Tânia Villela*
A preocupação que muitos prefeitos em todo o país vêm manifestando quanto à proposta de reforma tributária justifica-se quando se observa a importância do ISS para os municípios, sejam os mais populosos, sejam os de menor porte.
Entre outras medidas, o projeto constante no substitutivo da PEC 45/2019 apresentado ao Congresso Nacional pelo relator, deputado federal Aguinaldo Ribeiro, em 22 de junho de 2023, propõe unir o ICMS, de competência dos estados, e o ISS, dos municípios, num único tributo chamado de Imposto sobre Bens e Serviços (IBS), cuja arrecadação será repartida entre estados e municípios.
O IBS, imposto que incidirá sobre o valor agregado (tipo IVA), assim como já é o ICMS, trará prejuízos financeiros e políticos aos municípios de todos os tamanhos populacionais, ferindo profundamente o pacto federativo, uma vez que os municípios passarão a depender quase que inteiramente dos repasses federais e estaduais e da problemática divisão da receita desse novo tributo, como será visto adiante.
A prevalecer essa proposta, os municípios deixarão de ter autonomia na arrecadação do tributo que mais cresce[1] no Brasil e que possui grande importância em seus orçamentos. Para as cidades com mais de 500 mil habitantes, o IBS representa cerca de 20% de toda a sua receita corrente. Para aqueles com população de 200 mil a 500 mil moradores, a importância desse tributo é de 11%, em média. Já as cidades de menor porte, que nos últimos têm registrado um ritmo de crescimento na receita de ISS superior aos demais grupos de municípios, deixarão de usufruir deste potencial[2].
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As questões relacionadas à implementação, gestão e repartição do IBS ficarão sob a responsabilidade de um Conselho Federativo formado por estados e municípios. De acordo com Alberto Macedo[3] em seu recente livro sobre a reforma tributária, “um modelo em que se pretende aglutinar, num conselho federativo, estados e municípios, deixa os municípios, invariavelmente, à mercê do poder dos estados, por conta da possibilidade de cooptação de municípios pelos respectivos estados, gerando dependência pragmático-política.”
PublicidadeO autor alega que a concentração do poder nas mãos da União e dos estados poderá aniquilar os interesses municipais, o que fere o equilíbrio federativo. Para ele e outros profissionais do direito constitucional a instituição de um conselho tal como descrito na proposta é inconstitucional, uma vez que afronta a cláusula pétrea da Constituição Federal (art.60, § 4º, I, CF/88) onde se lê que “não será objeto de deliberação a proposta de emenda tendente a abolir a forma federativa de Estado”.
Tal Conselho Federativo seria, na verdade, uma aberração federativa, uma vez que teria grandes poderes, como os de interferir na fixação das alíquotas do IBS (até o momento indefinidas), na repartição das receitas entre estados e municípios, na definição dos regimes especiais, na edição de normas, etc.
Aos enormes conflitos federativos que já emergem da atual proposta de reforma tributária se aliam ainda outros problemas dela decorrentes. O modelo tributário projetado é demasiadamente complexo, levará tempo excessivo para sua implementação completa[4], resultará em aumento de carga tributária conforme diversos estudos já apontaram, causará prejuízos às empresas optantes pelo Simples Nacional[5] e elevará consideravelmente os contenciosos judiciais em razão dos inúmeros regimes especiais que estão sendo delineados. Além disso, mais contenciosos serão produzidos pelo simples fato de a reforma ser profundamente disruptiva, ou seja, pretende-se instalar, em substituição ao sistema já existente, um arranjo completamente novo, que alterará drasticamente os preços relativos no mercado ao elevar as alíquotas do setor serviços, com impactos deletérios e imprevisíveis para a economia e para as pessoas, especialmente as de menor renda.
Por que, então, os municípios abririam mão de sua já limitada autonomia financeira para uma junção de tributos que não levaria à simplificação do sistema tributário e tão pouco beneficiaria a economia? Não há sequer evidências comprovadas de que tal reforma venha a induzir o crescimento econômico no país como previsto pelos seus defensores.[6]
Um dos grandes problemas do nosso sistema tributário é a litigiosidade em torno de créditos tributários, que envolve recursos de mais de R$ 3 trilhões, concentrando-se, sobretudo, no ICMS[7]. Esta questão pode ser resolvida aprimorando-se o próprio ICMS por meio de legislação complementar e resoluções. Segundo pesquisa da Confederação Nacional da Indústria (CNI), 42% dos empresários pesquisados atribuem ao ICMS os maiores impactos negativos sobre a competitividade.[8]
Portanto, não é necessário transformar o ISS num imposto complexo e custoso para o fisco e para os contribuintes como é o ICMS, nosso atual IVA. A cumulatividade do ISS, como já apontada em diversos estudos, não é prejudicial à economia. Sua simplicidade e baixa alíquota compensam em muito a sua cumulatividade[9]. Ademais, o ISS é o imposto mais adequado para a nova economia digital que se expande a passos largos pelo mundo. Tanto é que diversos países que possuem IVA estão instituindo sua Digital Service Tax, imposto sobre o faturamento, nos mesmos moldes do nosso ISS, para tributar as big tech.3
O substitutivo da PEC 45 parte de premissas equivocadas quando tenta fazer crer que a solução para a simplificação dos tributos sobre consumo seria a unificação de impostos aos moldes do IVA de alguns países que nem federações são e que, quando o são, diferem profundamente do nosso modelo federativo. Entre países federados, tem-se os Estados Unidos, por exemplo, que não possuem IVA e não o desejam[10].
Na Índia, outra federação, a adoção do IVA a partir de 2017 tem gerado problemas de harmonização das regras tributárias que poderão levar à reformulação do sistema recentemente adotado e trazer prejuízos políticos para o governo que o implementou[11]. No Brasil, o IBS, além de não ser a saída para os nossos problemas, trará “resultados catastróficos em termos de informalidade, sonegação e custos aumentados para o consumidor”[12], desnecessariamente.
Uma proposta alternativa, baseada em outras premissas de simplificação, foi criada pelo movimento Simplifica Já e protocolada no Congresso Nacional como PEC 46, em 2022, pelo senador Oriovisto Guimarães. Essa PEC mostrou-se mais cautelosa, coerente e focada nas reais demandas da sociedade por simplificação e por manutenção da carga tributária, sem que seja necessário unir ICMS e ISS. Em linhas gerais, a propositura prevê:
- Aperfeiçoamento do ICMS por meio da uniformização das 27 legislações estaduais (IVA estadual), criação de cadastro único de contribuintes, aprimoramento da não-cumulatividade e sistema nacional integrado de emissão de nota eletrônica que calculará o valor do ICMS a pagar, livrando o contribuinte do risco de receber multas a cada apuração. O sistema fará a distribuição automática entre os estados envolvidos em cada operação. A gestão será feita por um Comitê Gestor dos Estados. Haverá a possibilidade de um determinado número de alíquotas e de uma transição para a tributação preponderantemente no destino definida pelo Senado Federal por resolução. Não haverá a necessidade de fundos de compensações ou de transições complexas.
- Aperfeiçoamento do ISS por meio da uniformização das legislações municipais. A Nota Fiscal de Serviços Eletrônica Nacional (NFS-e Nacional) já criada e em uso por mais de 500 prefeituras, será implantada em todos os municípios. A arrecadação será compartilhada entre os municípios de destino e de origem. A NFS-e Nacional simplifica a vida do prestador de serviços, uma vez que calcula o ISS consolidado a ser pago e reparte automaticamente a arrecadação para os respectivos municípios envolvidos nas operações do contribuinte.
- Redução dos encargos da folha de pagamento para todos os setores, sem perda de arrecadação. As empresas que mais empregam e com maiores médias salariais terão alíquotas reduzidas; haverá contribuição dos marketplaces por meio de uma pequena alíquota que incidirá sobre a comissão das empresas prestadoras de serviços digitais e outras medidas que ficarão a cargo de leis complementares.
Dessa forma, a PEC 46 não embute em si fatores de conflitos entre os entes federados e nem entre indústria, serviços, comércio e agricultura. Não causa impactos imprevisíveis sobre a economia e sobre o poder de compra das pessoas e reduz drasticamente as situações que geram a maior parte dos litígios judiciais. A PEC 46 não menciona os tributos federais, mas a proposta do movimento Simplifica Já é que a União promova a unificação de seus tributos e contribuições por meio de leis complementares.
Por ser muito mais facilmente compreendida por todos e não prever um longo período de transição durante o qual seriam ainda mais altos os custos de conformidade, a PEC 46 ganhou a adesão de diversos setores e especialistas. São mais de 120 entidades que manifestaram apoio à proposta até os primeiros meses de 2023, entre elas a Frente Nacional de Prefeitos (FNP).
* Tânia Villela é economista, editora de anuários sobre finanças municipais, dentre eles “Multi Cidades – Finanças dos Municípios do Brasil” e “g100 – Municípios Populosos com Baixa Receita Per Capita e Alta Vulnerabilidade Social”, diretora da Aequus Consultoria Econômica e Sistemas.
Referências citadas no texto.
[1] Entre 2004 e 2021, o ISS apresentou uma alta real acumulada da ordem de 211%, ao passo que a do ICMS foi de 90%.
[2] Dados de 2021 divulgados no anuário Multi Cidades – Finanças dos Municípios do Brasil – Ano 18/2023, publicação da Frente Nacional de Prefeitos e Aequus Consultoria. http://aequus.com.br/publicacoes/multi-cidades/
[3] Macedo, Alberto. Como Desatar o Nó dos Tributos no Brasil? São Paulo, Editora Quartier Latin do Brasil, 2023.
[4] No substitutivo da PEC 45 serão 8 anos de transição para os tributos (2033) e 50 anos para a transição para a cobrança no destino e a repartição da receita entre os entes federados (2078).
[5] O Simples Nacional será severamente afetado com a PEC 45, uma vez que não será admitido às empresas submetidas ao IBS adquirirem créditos de impostos decorrentes de aquisições de insumos de empresas fornecedoras que são optantes do Simples. As empresas sujeitas ao IBS com uma das alíquotas mais altas do mundo tenderão a optar por fornecedores que lhes permitam adquirir créditos. Assim, as empresas do Simples Nacional serão alijadas do mercado ou sairão do Simples.
[6] https://www.poder360.com.br/opiniao/sobre-reforma-tributaria-parte-4-as-pecs-45-e-110-produzem-crescimento/
[7] Citado por Everardo Maciel em entrevista para a Fecomércio SP em 14/10/2019. https://www.youtube.com/watch?v=EODJ_OKtzuk
[8] Sondagem Especial/Confederação Nacional da Indústria – Ano 2019, nº 73 (mar/2019) – Brasília: CNI, 2019. Nota: hoje o contribuinte que trabalha nacionalmente tem que entender a legislação dos 27 estados com milhares de leis, decretos, portarias e resoluções, com mais exceções do que regras. O cálculo do ICMS a pagar fica a cargo do contribuinte, o que o deixa sujeito a contestações do fisco mesmo anos depois do pagamento do imposto.
[9] Sobre a questão da cumulatividade e outros conceitos relacionados à reforma tributária, ver o conjunto de artigos “Caminhos para a Reforma Tributária – Onde estamos, o que queremos e qual é o caminho para avançar na direção desejada”, publicados por vários autores do Observatório da Reforma Tributária, setembro de 2020. Disponível em:
https://www.joserobertoafonso.com.br/caminhos-para-a-reforma-tributaria-rezende-et-al/
[10] No artigo “Reforma Tributária e o IVA (Imposto sobre Valor Adicionado): vale insistir no fracasso?”, publicado na Revista Brasileira de Direito Municipal, Belo Horizonte, Editora Fórum, novembro 2018, disponível no site da Abrasf, o advogado tributarista Ricardo Almeida elenca as razões pelas quais os EUA evitam a adoção do IVA. http://www.abrasf.org.br/arquivos/files/ARTIGO_RICARDO.pdf
[11] Macedo, Alberto. Como Desatar o Nó dos Tributos no Brasil? São Paulo, Editora Quartier Latin do Brasil, 2023.
[12] Citação do jurista Heleno Torres no prefácio do livro de Alberto Macedo indicado na nota anterior.
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