Miguel Lago*, Arthur Aguillar** e Rebeca Freitas***
As denúncias em torno de negociações de vacinas e supostas intermediações com variados tipos de “vendedores” ocupam as principais páginas da imprensa. É natural que na volta do recesso a CPI se empenhe em investigar mais a fundo a possível corrupção nesses processos. Mas existe um tema que não pode sair do radar político e que também deveria chamar a atenção de todos nossos parlamentares: o governo federal está dificultando o acesso a informações cruciais sobre a saúde da população. Isso pode dificultar a resposta do Brasil às consequências da pandemia.
Quando falamos das vítimas da pandemia, é natural que recordemos primordialmente a trágica marca de mais de 500 mil pessoas mortas pelo coronavírus. No entanto, a pandemia carrega outros efeitos indiretos extremamente nocivos para a saúde da população, em especial aos portadores de doenças crônicas não transmissíveis (DCNTs), como câncer e diabetes. O receio e a impossibilidade de realizar consultas de rotina durante a pandemia gera dois problemas para esse grupo. Primeiro, posterga consultas e exames fundamentais para seu manejo. Segundo, na ausência das consultas de rotina, a tendência é que os casos em condições crônicas se agudizem e que o número de pacientes com diagnóstico tardio aumente, consequentemente intensificando internações e aumentando a letalidade das DCNTs. Assim, a (in)competência no manejo da pandemia também afeta diretamente a saúde dos portadores dessas enfermidades.
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Para conhecer o impacto da pandemia sobre as doenças crônicas, é preciso ter dados e o estado brasileiro tem uma ferramenta desenvolvida para isso. Desde 2006, o Ministério da Saúde acompanha o perfil epidemiológico nacional das DCNTs por meio da Vigilância de Fatores de Risco e Proteção para Doenças Crônicas por Inquérito Telefônico – o sistema Vigitel. A pesquisa traz informações cruciais sobre fatores de risco para o desenvolvimento de DCNTs, como consumo de alimentos ultraprocessados, de álcool, de tabaco e sobre sedentarismo. Ao longo dos últimos 15 anos, a Vigitel consolidou-se como uma política de Estado priorizada por diversos ministros, partidos e governos, e exerceu um papel fundamental para o monitoramento da evolução desses e outros indicadores na população, além de embasar a implementação de diversas políticas de saúde no país.
Neste ano, o Ministério da Saúde atrasou em seis meses a divulgação dos dados da pesquisa de 2020. Os dados, que são geralmente disponibilizados em novembro, desta vez foram publicados apenas em maio, o que só ocorreu após intensa pressão da sociedade civil. Para além do atraso, o Ministério tem dificultado o acesso às conclusões da pesquisa. Nas edições anteriores, era de costume a publicação de um relatório com os principais achados do inquérito, mas desta vez foram publicados apenas os dados crus.
Os atrasos na publicação e as barreiras ao acesso das conclusões da pesquisa são apenas o começo: corremos hoje um risco concreto de ficarmos sem a pesquisa em 2021 e 2022. Até o momento, nenhuma empresa foi contratada e sequer existe um cronograma para a realização da pesquisa. Segundo fontes consultadas, o risco de não realização é grande, pois faltam apenas cinco meses para o fim do ano e somente a etapa de apenas a coleta de informações costuma consumir cerca de três meses.
A transparência em relação aos achados da Vigitel de 2020 e a sua realização em 2021 são absolutamente essenciais para a realização de políticas públicas baseadas em evidências. A pandemia da Covid-19 deixará marcas e sequelas na saúde da população, e para prepararmos nosso sistema de saúde para atendê-las satisfatoriamente precisamos entender o tamanho do problema e as necessidades das pessoas.
Por que o governo federal insiste em dificultar o acesso ao resultado da Vigitel? E por que arca com o risco de passar o ano de 2021 sem realizar o levantamento, enquanto enfrentamos o maior colapso sanitário e hospitalar da nossa história com consequências ainda imensuráveis? Essa prática destoa da tradição da Secretaria de Vigilância em Saúde do Ministério da Saúde, órgão responsável pela pesquisa e que sempre se destacou pela qualidade técnica de seus quadros.
Urge que o Congresso Nacional desempenhe seu papel de fiscalizador do Executivo para exigir a realização da Vigitel de 2021, bem como a divulgação do relatório da pesquisa de 2020.
* Diretor-Executivo do Instituto de Estudos para Políticas de Saúde
** Coordenador de Políticas Públicas do Instituto de Estudos para Políticas de Saúde
*** Especialista em Relações Governamentais do Instituto de Estudos para Políticas de Saúde
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