Luiz Rabelo *
A nota divulgada na última quinta-feira (10) pelo Ministério da Defesa é a prova inequívoca da urgência que o governo eleito tem de, tão logo seja possível, retomar a efetiva direção civil das Forças Armadas. Mesmo após a derrota nas urnas de Bolsonaro, a pasta continua a cumprir o papel de assessoramento do atual presidente na inadmissível chantagem à vontade soberana do povo brasileiro manifestada nas urnas no dia 30 de outubro.
É vergonhoso um ministério que tem o nobre papel de gerir as instituições militares sob claras balizas democráticas, veicular, na atual conjuntura, após o reconhecimento formal do vencedor do pleito pela Justiça Eleitoral, uma nota que, na prática e com uma frágil base técnica, coloca em xeque o sistema de votação do país.
É preciso ser dito com todas as letras: o relatório entregue pela Defesa ao Tribunal Superior Eleitoral (TSE) não tem o propósito de contribuir para o aperfeiçoamento do sistema de votação e de sua principal ferramenta, a urna eletrônica. Diferentemente disso, o documento apenas serve para reforçar o discurso autoritário e antirrepublicano do atual mandatário do país.
Na lacônica nota divulgada anteriormente, um dia antes, o Ministério da Defesa sinalizava que acabaria ali com as especulações sobre eventuais contestações ao resultado das eleições presidenciais. O conteúdo chegou a motivar outra nota, dessa vez do TSE, que comemorava o reconhecimento da equipe técnica da Defesa à lisura e ao correto funcionamento do sistema eletrônico de votação.
No entanto, menos de 24 horas depois da divulgação da primeira nota, certamente pressionado pelo inconformado presidente da República e por seus seguidores, o ministério divulga nova manifestação, a pretexto de esclarecer aquela que deveria ser a correta interpretação da nota da véspera.
PublicidadeEm síntese, a Defesa afirma que o fato de não ter constatado fraude ou inconsistência nas urnas eletrônicas e no processo eleitoral de 2022 não “exclui a possibilidade” de que essas desconformidades tenham ocorrido. Em seguida, lista três aspectos técnicos que, segundo a pasta, demandariam esclarecimentos da Justiça eleitoral.
Devemos ser claros: o conteúdo da segunda nota publicada pela Defesa é, para dizer o mínimo, irresponsável. O país finalizou uma eleição conturbadíssima há menos de duas semanas. Como sabemos, o pleito foi apertado, com pouco mais de 2 milhões de votos de diferença em favor do vencedor. O resultado desencadeou uma série de manifestações antidemocráticas dos eleitores do candidato perdedor, com bloqueios de estradas e aglomerações em portas de quartéis em todo o país.
Autoridades e eleitores do candidato vitorioso continuam a sofrer ameaças. Notícias falsas seguem pipocando nas redes sociais e em aplicativos de mensagem, com ameaças às instituições democráticas. Nada disso, entretanto, parece sensibilizar o ministro da Defesa brasileiro. Entre evitar botar mais lenha na fogueira da confusão nacional e agradar o chefe, ele não titubeou em optar pela segunda alternativa.
Se a intenção do Ministério da Defesa fosse efetivamente contribuir para o aprimoramento do sistema eleitoral, o órgão deveria cumprir sua atribuição e enviar ao TSE, de forma discreta, as conclusões de seu trabalho. Como, aliás, fizeram outras instituições que participam do grupo criado pela corte eleitoral para esse fim.
Nenhum problema grave foi apontado pelo relatório da Defesa, que, aliás, não demonstrou a mínima evidência de fraude no robusto sistema eletrônico de votação brasileiro. Inexistindo prova inequívoca de fraude, como foi o caso, claro que não havia qualquer justificativa para eventual alarde em relação ao trabalho realizado pelos técnicos militares.
Em uma conjuntura atribulada como a atual, é de uma irresponsabilidade atroz colocar em xeque o corretíssimo trabalho executado pela Justiça eleitoral com base em conclusões preliminares açodadas e tecnicalidades que, ao que tudo indica, serão esclarecidas e aprimoradas com labor complementar.
Na nota veiculada quinta-feira, na tentativa de justificar o injustificável, a Defesa solicita ao TSE “urgência” na realização de uma investigação técnica para apurar as desconformidades que aponta no relatório sobre o sistema de votação.
O que parece ser urgente, no entanto, é, como mencionado, retomar a direção civil do Ministério da Defesa pelo governo eleito, assim que o novo presidente tomar posse. Pasta de enorme importância, com um dos maiores orçamentos do país, a Defesa precisa ser recolocada em seu correto rumo, cujo horizonte está bem delineado na Constituição cidadã.
Necessita, sim, impulsionar os importantes projetos militares iniciados nos dois primeiros mandatos do governo Lula e continuados no governo Dilma Rousseff, como os acordos de aviação de caça com a Suécia, da frota de submarinos com a França e dos blindados com a Itália, entre outros. Precisa reorientar a indústria de defesa para a produção nacional, como determina a legislação vigente. Tudo isso é uma tarefa hercúlea, considerando as dificuldades orçamentárias e fiscais do país.
Para além da questão do reequipamento das Forças Armadas, há algo ainda mais urgente a ser feito pelo novo governo: iniciar, com o Congresso e com a sociedade civil, um amplo debate sobre o papel dos militares no país.
Se a nação nunca mais quer ver órgãos como o Ministério da Defesa cumprindo esse triste papel de chantageador da República, com notas como a divulgada quinta-feira, deve, indispensavelmente, encaminhar nesse diálogo soluções concretas para questões centrais como a formação das academias militares e a inadequada participação de integrantes das três Forças, incluindo pessoal da ativa, em cargos da administração pública civil.
* Luiz Rabelo é jornalista e bacharel em Direito. Foi assessor especial do Ministério da Defesa entre 2010 e 2014 e delegado brasileiro junto ao Conselho de Defesa da Unasul entre 2015 e 2016.
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