Atente os seus ouvidos
Mais as coisas do que aos Seres
À voz do Fogo, fique atento
Ouça a voz das Águas.
Ouça através do Vento
A Savana a soluçar
É o Sopro dos ancestrais
Birago, poeta angolano.
Sabemos que a sociedade é disciplinar e está ligada a amplos processos históricos no interior dos quais ela tem lugar e referências para a manutenção do que pode ser estabelecido. As referências por sua vez estão contidas nos processos econômicos, jurídico-políticos, científicos, enfim.
De modo geral pode-se admitir que as disciplinas que organizam a sociedade são artifícios para “assegurar a ordenação das multiplicidades humanas”. No início a aculturação foi um dos caminhos encontrados pelo poder para manter cada um em seu lugar. Neste processo não há nada de excepcional, qualquer sistema de poder se coloca com o mesmo problema. O que muda no caso da sociedade brasileira é o modo como foi construída a aculturação, o racismo, a intolerância e seus efeitos.
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Já é bastante conhecida a ritualidade que foi dada a saída dos escravizados antes do embarque no navio negreiro, quando muitas voltas eram dadas em torno do baobá com a finalidade de esquecer a sua cultura, a sua vida comunitária. Na entrada do tumbeiro, receber o batismo compulsório culmina com a perda do nome ancestral e com a afirmação de um nome de santo católico.
É neste contexto que se dá início e efetiva a dominação de negros e negras os quais enfrentam o processo de desculturação que os separa da convivência com seus próprios valores ontológicos, enquanto os “iguala” compulsoriamente a hegemonia que é branca.
PublicidadeNo processo de igualar o negro compulsoriamente não pode ser esquecido o papel da religião oficial, e da igreja que se tornou a maior aliada do sistema escravagista com a monopolização de terras. Neste sentido, o grande feito do sistema foi manter as relações político-econômicas do capitalismo de modo que pudesse garantir a reprodução da sociedade em sua “harmonia de desigualdade e contradição”.
Um corpo dócil e sem alma ancestral
A partir deste recorte que fizemos do assunto em questão fica patente o prejuízo causado pela vigilância da Igreja. O africano antes de vir para a América era um ser inteiro de corpo e alma livres. Escravizado, ficava só a metade. Sem alma, até mesmo quando o negro era chamado para ficar ao lado de Olorum, seu lugar era fora do “sagrado”. Nem a morte, o fazia relaxar a vigilância. Negros são enterrados fora do sagrado, com os suicidas. Na verdade, nos foi roubada a alma ancestral, para que fosse utilizado apenas um “corpo dócil” para o trabalho escravo.Sem nome, sem alma ancestral, tudo pode parecer mais fácil se não fosse o desejo incontido da liberdade. Pela iniciação e o apoio da família extensa os princípios da nossa vida ancestral nos propiciaram uma nova relação de ser no mundo. O corpo preto foi quase um produto perfeito da escravidão com a formação de um comportamento firmado na obediência e interiorização da inferioridade social, justificada pela cor da pele. Herdamos também na educação princípios reguladores da criatividade e da inteligência limitada pela cegueira da obediência. Nada de transgressões pela curiosidade e pronto.
> O espaço e a tradição negro-africana em São Gonçalo
A população negro-mestiça sempre padeceu de discriminação da sociedade que nunca esqueceu o escravismo. A política de imigração europeia para o Brasil, considerou abertamente o trabalhador europeu como elemento civilizador enquanto o brasileiro como o barbarizador. Em 1891 os portos brasileiros se fecham para todo homem de cor. Em janeiro de 1890, a Lavagem do Bomfim foi dispersa pela guarda civil a golpes de carabina.
Ainda como parte da perseguição, o médico Nina Rodrigues proclamava no seu livro “Os Africanos no Brasil”, que o tempo dos negros e negras vítimas da escravidão pertencia ao passado. Para este médico racista, a República deveria olhar cientificamente para os negros na busca de elementos perigosos a manutenção da ordem pública.
Hoje estamos na busca da reparação que deve ser entendida como direito coletivo. Ainda bem que paralelamente às experiências negativas, cabem sinais de luta e esperança por políticas públicas e reparadoras. Saberes ancestrais trazidos no Orim e guardados entre a pele a carne de nossos antepassados, restauram e vivificam os nossos caminhos com a força que anima vidas que retornam acompanhadas de ancestrais de valor como verdadeiras Iyalodê, como Iya Tundê ou Iyalorixás, que retornam assim como Mãe Beata de Iyemanjá.
Com inspiração e consciência histórica, a Iyalorixá Beata de Iyemanjá, mãe por excelência e ativista, completaria ontem, dia 20 de janeiro, 90 anos de vida aqui na terra entre nós seus filhos e muitos amigos e amigas. Lembramos com emoção que foi por meio da lógica da família de santo que esta nossa matriarca, apoiada na sua ancestralidade, lutou toda sua vida com a comunidade preta que reuniu para transformar o que restou dos destroços desumanizantes do processo de escravização.
Nas suas perspectivas “homens e mulheres que tiveram seus ancestrais desterrados deveriam se apropriar o quanto antes de seus lugares de resistência e lutar para que a sociedade nos reconheça e nos acolha como cidadãos e cidadãs e seres humanos”.
Mãe Beata todo tempo bradou pelo sentido de humanidade e liberdade de nossos corpos pretos na sociedade. “Uma dor é igual para todas as pessoas do mundo. Para homens e mulheres, pretas em todas as relações inclusive as homo afetivas. Aqui todos são meus filhos”.
“Neste momento eu penso muito nos jovens que estão chegando. Começo a pensar que tenho que andar mais rápido para que as leis que possam nos proteger sejam cumpridas. Para eu poder guiar estes jovens e dar uma mão com um pouquinho do meu saber ancestral, tirar algo do meu baú de memória e dividir com estes jovens. Eu sei que Olorum vai me chamar na hora certa. Por mim eu tiro, eu que aprendi numa boa, carta de ABC dos meus antepassados. Pilando no pilão da pedra do Aló, na beira da tina lavando roupa, na esteira rezando e comenda com a mão esquerda. Eu tenho plena certeza que meus ancestrais tem uma certa alegria por mim. Pela minha rebeldia e a minha ânsia de cobrar as dividas dos políticos e daqueles que não respeitam nem a nossa cultura nem a nossa fé em nossos orixás. Eu sei que muitas vezes os meus ancestrais, se reúnem e dizem: ‘Ela é danada mesmo, não é a toa Beata que tu nasceu na encruzilhada’”.
O texto grifado em itálico foi retirado do livro “Mãe Beata de Yemonjá, guia, cidadã, Guerreira”, de Haroldo Costa.
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