Marcelo Mirisola*
Vitor Civita era um imigrante e, por natureza, um desbravador, um caçador de oportunidades, obcecado por trabalho e crescimento, típico homem de negócios dos anos quarenta e cinquenta do século passado. Teria alcançado o mesmo sucesso se vendesse salsichas e embutidos. Attílio Fontana fundou a Sadia em 1944, ensacava salames como se imprimisse HQs do tio Patinhas. A editora Abril nasceu em 195o. Eram homens que se fizeram por si mesmos, self made man. Poderia citar uma dezena de exemplos. E, com certeza, uma característica comum iria se destacar em todos os casos, além do pioneirismo e do empreendedorismo, a autopreservação.
Roberto e Omar, respectivamente filhos de Vitor e Attílio, a primeira geração, talvez tivessem as qualidades e as ambições paternas redobradas, homens de negócios que “materializaram o milagre brasileiro” dos 70’s e que, claro, aproveitaram a ocasião para prosperar, e crescer. Não só economicamente, mas politicamente. Transformaram-se em gigantes, a mesma coisa aconteceu com a Rede Globo, mancomunada e turbinadíssima pelo regime militar. Daí que – óbvio – todos eles tiveram de aguçar o senso de autopreservação e agressividade (leia-se escrotice). Quem é que não lembra de Cazuza agonizando na capa da Veja?
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Todavia essas “características” não eram inerentes apenas aos homens de negócios, o mundo pertencia aos fortes e truculentos, estamos falando da era dos homens de Marlboro, início dos anos setenta do século passado. Eu devia ter a idade dos filhos de Roberto nessa época, e ainda me recordo de uma propaganda – provavelmente na Veja – que estimulava os homens de negócios e industriais do sudeste a desbravar o norte do país, que dizia mais ou menos o seguinte “Traga sua fumaça para a Amazônia”; era a época do milagre econômico, auge do governo Médici, da Transamazônica, de Amaral Neto, o repórter. Brasil tri-campeão no México, AI-5 etc.
O tempo passou e os ares mudaram. E os netos de Civita, filhos de Roberto e os filhos de Omar, e de outros tantos, herdaram um mundo em ruínas, o mundo de Steve Jobs e Bill Gates. Mas quem virou mesmo a página, e sepultou de vez os homens de Marlboro, foi Mark Zuckerberg – jogou a pá de cal e se pirulitou para o metaverso.
O penúltimo dos barões ( talvez o mais frio e calculista e o legítimo herdeiro do espírito dos pioneiros no que se refere à autopreservação e liderança) morreu prematuramente faz quatro anos, e com ele sua geração sucumbiu, não sobrou pedra sobre pedra. A Sadia se transformou num puxadinho dos ultrabilionários bregas e encrencados Wesley e Joesley Batista. A editora Abril foi pras cucuias. O self made man virou persona non grata no Brasil dos sindicalistas, e da histeria coletivista.
PublicidadeHoje, cada dono de celular, é dono de um jornal, de uma transmissora de tevê, de uma rádio e de uma editora, e de todas essas mídias juntas e muitas outras. As cartas dos leitores, certa vez ridicularizadas por Paulo Francis, mudaram de lugar e relevância, agora, ocupam o lugar dos editoriais. Um mundo ocupado por bilhões de Chateaubriands deprimidos – espalhando fake news a cada milionésimo de segundo, diuturnamente, incessantemente. O desafio, hoje, não é mais se comunicar, mas se situar.
E o que sobrou do antigo mundo, aquilo que os otimistas chamam de “fronteiras”, os românticos de “jornalismo”, e os humoristas de “realidade” foi reduzido a um mugido repercutido entre meia dúzia de gatos pingados, bolhas. Algumas bolhas, por incrível que pareça, ainda influenciam os escombros da realidade, as fronteiras esfrangalhadas dos fatos, e o que sobrou do jornalismo.
Nesse ponto entra Fernanda Diamant, viúva de Otávio Frias Filho. Ela é uma figura ímpar, corte epistemológico, um símbolo didático para entendermos esse imbróglio.
Até 2020, Diamant detinha participação no grupo Folha Par. Neste ano vendeu suas ações para o caçula, Luiz Frias, e assim Maria Cristina Frias, a irmã mais velha, foi destituída do posto de diretora de redação, acabando por sepultar de vez a qualidade editorial da FSP(preservada à duras custas por Otávio Frias Filho). De 2018 à 2020, ou seja, da morte de Otavio até a venda de suas ações, Diamant teve tempo de semear aquilo que hoje, a meu ver, significam as ruínas da holding e a cara do tempo em que vivemos.
Fernanda é o ponto de inflexão. O ponto onde o antigo mundo dos homens de Marlboro e o novo mundo definitivamente se divorciaram.
Ela contava 23 anos a menos que o marido na data em que ele faleceu; é uma mulher do novo milênio, com todas as aspirações e ideais de sua geração. Sendo que seu traço mais marcante é diametralmente oposto à principal característica dos pioneiros Civitas, Frias, Mesquitas, Marinhos; um traço que a conduz radicalmente ao extremo contrário daquilo que, com certeza, era a principal característica dos self made men.
Fernanda Diamant é portadora de uma culpa geracional que a conduz ao auto-sacrifício. À destruição, à ruina. Existe um eufemismo chique, uma palavra que dá um certo charme e heroísmo à tal condição: desconstrução. Como se ao se “desconstruir” vislumbrássemos erguer algo no lugar, mas não!
Ficam só as ruínas e o discurso ressentido no lugar da obra. Terra arrasada.
Diamant é o self made ao contrário, ela é o espírito do tempo encarnado de uma geração que conquistou o mundo sem precisar desperdiçar uma gota de suor, são os filhos do casamento das redes sociais com o google. No lugar do cimento e das vigas de ferro, o discurso reparador e revanchista, a culpa.
No caso de Fernanda e de sua geração, a culpa estrutural. Como se não bastasse a culpa judaico-cristã, agora a afro-quilombola e uma infinidade de outras culpas, medos, pavores e sub-culpas que derivam da “estrutura”. Quem elaborou essa tese, sim é uma tese, sabia que a culpa é um dos produtos mais perenes e rentáveis do mercado. O cristianismo, aliás, vive disso desde o Concílio de Nicéia, há 1.700 anos.
O prazo de validade da culpa judaico-cristã há muito havia expirado para o público progressista do circuito USP, Casa do Saber, Paraty, Vila Madalena. E, aqui entre nós, a tese das culpas estruturais foi uma tacada de mestre cuja inspiração veio diretamente das quintas do inferno. Mme.Diamant e as amigas morderam a isca gulosamente, com fervor.
O sacana que ajambrou as “culpas estruturais” só fez mudar o objetivo e a abrangência do auto-sacrifício, do martírio e da expiação. Antes a purificação viria através do martírio individual, agora, todavia, não basta o auto-flagelo: para alcançar o paraíso e expurgar a culpa será necessário chegar às estruturas.
O objetivo é a castração ampla, geral e irrestrita – primeiramente daqueles que abraçam a tese, e depois faz-se mister riscar do mapa aqueles que são a estrutura ou a razão de ser da histeria estrutural, ou seja, os homens brancos e heterossexuais, evidentes opressores e inimigos até que se rendam ou que se prove o contrário.
Só assim se chegará ao paraíso que tem sede à rua Barão de Limeira 425, onde todos serão inclusivos, inteligentes, artistas, mártires sadomasoquistas, fluídos, auto-censurados e censores, lindos e desconstruídos.
Ou seja, a culpa estrutural é muito mais violenta, ardilosa, excludente e selvagem que o cristianismo inventado por Constantino no século terceiro depois de Cristo. A desconstrução avança à olhos vistos, e tudo que ameaça seu discurso de hegemonia totalitarista, vai ter que ser “repensado” e “desconstruído”.
Por exemplo, é inconcebível que homens e mulheres brancos de “direita” ( porque se são brancos e heterossexuais, logo são de “direita”) prosperem e se reproduzam no capitalismo, uma vez que para os iluminados desconstruídos, a genética – pasmem!! – é opressiva, fascista e excludente.
Talvez eu me encontre na posição mais ingrata e aparentemente mais escrota, mas não dá para me omitir diante do louco enfurecido que avança na minha direção com uma faca na mão. O despautério é tão grande que pode parecer que estou alimentando bolsotrogloditices, mas não se trata disso. Absolutamente não! Também não se trata de ideologia, mas de instinto de sobrevivência. Puro instinto de sobrevivência. Como é que posso vestir a carapuça da culpa e compactuar com a esquerda identitária se a pauta é me enquadrar e acabar comigo, me riscar do mapa?
Além da genética e da biologia, dançou a história, dançaram o idioma, as artes, a música, as churrascarias, a literatura etc etc. Tudo instrumento de opressão, menos o basquete e o atletismo.
Como eu estava falando, Mme.Diamant deixou de ser acionista do grupo Folha Par em 2020, mas desde a morte de Otavio Frias Filho até a referida data, o estrago já havia sido feito. E acabou de ser consumado com a instalação de um comitê de censura-prévia na FSP, muito provavelmente sob inspiração de dona Solange, digo, Mme. Diamant.
Dona Solange ( deem um google, “dona Solange, ditadura”) está de volta! Só que agora são 14 solanges, sendo que nove são mulheres negras, e cinco homens-solanges brancos – imagino que todos gays a seguir a lógica do paredão.
Acabou a moleza, Antonio Risério!
Trocando em miúdos, a Folha optou pela ideia única e por ser um informativo de guetos, e parece que os seus executivos estão empenhados em fechar suas portas, desejo meus pêsames e felicidades a todos.
Voltando à Fernanda Diamant.
Basta abrir o portal Uol, ou mesmo ler a FSP, para constatar que o grupo Folha Par segue ipsis litteris a cartilha de madame: a alma caridosa, suicida e estruturalmente torturada e culpada de Fernanda Diamant está estampada todo dia no portal UOL e nas páginas da moribunda FSP, a ponto de pautar e contaminar os concorrentes. Os grupos de comunicação se despersonalizaram: a ladainha é a mesma, estão todos com a mesma cara, parecem com os carros que vemos nas ruas, marcas diferentes de um mesmo modelo. A título de curiosidade, basta comparar os colunistas do portal UOL de hoje e os que escreviam na FSP há dez ou quinze anos, com exceção de dois ou três, o que acompanhamos é uma marcha fúnebre de uma nota só. Bye bye sintaxe, bye bye pluralismo. E o pior de tudo, a nova ética estrutural dividiu e azedou a relação das pessoas, vivemos sob os signos do racismo e do sexismo, de uma dívida fictícia e impagável, de várias culpas e subculpas, do ódio e do ressentimento generalizados.
A rede Globo é um exemplo escancarado, além de se encontrar rendida, refém da supracitada culpa estrutural, definitivamente perdeu a falsa noção de equilíbrio e o monopólio da mentira.
Exagero? Basta observar toda noite o semblante derrotado de William Bonner no JN, que diz tudo. Nem vou falar da Globo News, seria redundância. Enquanto isso ,claro, a esgotosfera cresce e tripudia.
Bem, o desvario é tão grande que até parece que estou inventando uma teoria da conspiração, que o louco sou eu. Creio que é melhor deixar os leitores do CF na companhia de madame. Palavras de Fernanda Diamant ao abrir mão da curadoria da Flip, há dois anos:
“A festa precisa de uma curadora negra para reinventá-la nesse mundo pós-pandemia. Ao longo de 18 anos, a curadoria da Flip jamais foi ocupada por uma pessoa negra. Passou da hora disso mudar. Por essa razão, decidi pedir demissão e declarar meu desejo de ceder esse espaço de privilégio de forma pública.”
Sem querer fazer juízo de valor, mas é inimaginável que um Civita, um Frias ou um Mesquita raíz, ou qualquer ensacador de tripas, por mais ardilosos e manipuladores que fossem, inimaginável que viessem a público declarar que abririam mão de seus postos de comando para uma “pessoa negra” ou uma “pessoa lilás” ou “ uma pessoa vermelho-bonanza” porque seus impérios precisariam ser reerguidos e, somente assim – como se o futuro se resumisse a uma cor de parede – iriam ter integridade para “reinventá-los”(??).
Talvez no mundo da decoração de ambientes ou do feng-shui o insight de madame fizesse algum sentido, do contrário é hospício: em qualquer época, em qualquer lugar, em qualquer circunstância, não faz o mínimo sentido. Trata-se de um delírio de culpa em estado febril, quase místico. Acho que nem Santa Teresa d’Avilla em seus surtos de culpa masoquistas mais psicodélicos chegou a tanto.
Notem que o citado delírio não é uma estratégia de marketing de Fernanda Diamant, mas razão de sua existência, e diretriz da empresa que ela e as filhas herdaram dos Frias, marca registrada de uma geração martirizada que se julga em “desconstrução”.
Como se a Flip não fosse um sucesso, mas um “espaço de privilégio” ( e olha que eu odeio a Flip). Pela lógica de madame, a tinta e o sangue dos colunistas de seu jornal devem ser suprimidos, suprima-se o pluralismo dos homens brancos e privilegiados que ainda restam em nossas redações, e o gênio, ah, o gênio tem de ser desconstruído, bem como todas as iniciativas bem-sucedidas – em que pesem seus crimes e pecados – devem ser repensadas, ou seja, nada que deu certo merece existir, tudo que funciona é espaço de privilégio e opressão.
Com todo respeito, madame, vai catar coquinho.
Se formos seguir o diapasão do ralo ou essa lógica-de-hospício é melhor que Putin inicie logo a terceira guerra atômica, e que as ogivas nucleares trocadas com o ocidente pulverizem todos os espaços de privilégio, só assim os mutantes sobreviventes teriam chance de começar tudo do zero e, claro, sem espaços de privilégio e opressão, como quer Mme. Diamant.
Em termos práticos de administração de patrimônio material e imaterial – e obviamente de autopreservação – isso significa nada mais nada menos que a falência, o suicídio.
Por isso que Fernanda Diamant é o ponto de inflexão, a geração dela está, na prática e objetivamente, fazendo uma xepa de todos os “ espaços de privilégios” acumulados ao longo dos últimos cento e cinquenta anos. E é pra valer, é real!
Os negros e os indígenas e as minorias oprimidas podem meter o pluralismo na cuscuzeira junto com todos os branquelos opressores e privilegiados, desde Euclides da Cunha até Paulo Francis, e transformá-los em uma ideia única e fixa, em censura-prévia, em identitarismo raivoso e revanchista, e assim a justiça será feita no mundo desconstruído por mme. Diamant, e por suas amigx da Casa do Saber, da Flip e do curso de Filosofia da USP, só faltou combinar com os pretos e indígenas que pensam por conta própria, com a história da civilização ocidental, e com a massa ignara da internet, a qual às vezes sou obrigado a me incluir.
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