No momento em que escrevo, a atual administração da Fundação Cultural Palmares encabeçada por Sérgio Camargo retira oficialmente da Fundação nomes de personalidades negras como Conceição Evaristo, Vovô do Ilê e Lea Garcia. Há uma disputa narrativa em curso e por isso, não se calar, no meu caso fotografar, se faz urgente.
Na tradição africana o Sankofa, pássaro que volta a cabeça à cauda, simboliza o retorno ao passado para ressignificar o presente e construir o futuro e assim foi minha ida ao Quilombo de Palmares.
Cheguei à Alagoas para o 20 de novembro em 2018 com a câmera à tiracolo e um universo de imagens na cabeça. Eu, uma mulher negra de axé, ali com meus 26 anos, via no caminho entre o aeroporto e o hotel, que fica na orla de Maceió, diferentes e impactantes realidades de vida que qualquer fotógrafo pensaria em voltar para fotografar. Eu apenas registrei mentalmente e, instantaneamente, aquelas fotografias e recordei o motivo de minha ida: Dia da Consciência Negra.
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Viajar para documentar fotograficamente o 20 de novembro me fez questionar se tudo não passava de um sonho distante. Aquela luta representada por Zumbi, Aqualtune e outros, tinha permitido que no século 21 eu tivesse quebrado barreiras que seriam intransponíveis há pouco tempo. Sei que faço parte de uma exceção que confirma a regra. A pobreza que vi era o resultado do plano de Estado de manter o povo preto à margem.
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Aquelas imagens que vi pela janela do carro não eram meu objeto. Como objetificar a mim mesma? Eu não poderia reproduzir o mesmo olhar branco e elitista que explora a miséria e a violência ao povo preto. Eu estava ali, dentro da complexidade que é lidar com os contrastes, mas certa de que ao produzir registros fotográficos, deveria fazê-lo a partir de um olhar afrocentrado. Explico: a diferenciação entre a mera captura e a construção de uma linguagem fotográfica pelo fotógrafo está em como se constrói a imagem, ou seja, como os espaços são preenchidos com formas e cores, qual será o enquadramento e quem será enquadrado, e o principal, qual unidade e sentido está sendo produzido.
Assim, embora a câmera seja o instrumento de captura, as fotografias são feitas através do olhar, ou seja, há uma escolha em retratar o que se vê a partir das experiências de vida. Ao fazer essas escolhas o fotógrafo cria uma linguagem que possui inúmeros códigos e essa linguagem fotográfica só é decodificada porque a sociedade atribuí sentido à composição dos elementos.
PublicidadeO ato de fotografar produz uma memória coletiva, social e individual e o questionamento sobre o que somos, o que testemunhamos e quem esteve presente são indicativos de que a fotografia é um instrumento de comunicação e como diria Januário Garcia: um veículo de transformação social.
Eu estava naquele espaço sagrado para construir memória e dar continuidade ao que Januário Garcia, meu mestre e um dos maiores fotógrafos negros desse país, havia iniciado a mais de 40 anos. Registrar momentos a partir do meu olhar, da minha experiência e crenças, baseado em arcabouços que me atravessavam como negra e mulher. Isso significava criar uma narrativa visual de modo a valorizar a imagem de um povo que historicamente sofreu tentativas de invisibilização e foi estereotipado. Seria jogar luz sobre as imagens que furtaram de minha mãe, avó e tantas mulheres negras, nossas ancestrais, que não (ou pouco) puderam usufruir e construir como memória.
Em uma história que nos furtou da construção de autoimagem, pisar com os pés descalços na terra de Zumbi e Dandara me fez ter a certeza de que eu nasci para fotografar e que era parte de um sonho que se iniciou não em mim, mas em mulheres negras como eu e homens negros como Januário que resistiram por séculos para que você, nós, estivéssemos aqui fazendo/escrevendo história.
Escrevo com a luz. Construo subjetividades. Conto histórias em imagens, para que não nos imponham mais uma narrativa que não nos contempla.
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