Outro dia ouvi comentários do porteiro de um edifício aqui perto que considerei conveniente repassar para conhecimento geral, pela assertividade do pensamento e das conclusões dele, vindos de um homem simples, que mal concluiu o ensino básico, mas muito observador. Ele próprio afirma “não ter frequentado muito banco de escola”, mas se acha “um sujeito de boa cabeça, não sou de ser levado facilmente ao engano, sou mais sabido do que aparento”. Comentando sobre um colega a quem trata por Tião, também porteiro, José Matias disse que ele “vive uma vida de merda, com um salário de merda, e ainda faz das tripas coração para dar dinheiro àquela igreja de merda. Esse dinheirinho curto faz muita falta em casa.
Na comunidade dele o pastor tem carro importado, terno de marca, sapato de couro, muita grana, vive bem e tudo o mais. Tião me convidou a assistir um culto com ele. Acredita que foi Deus quem quis assim, que Deus é bom para quem lhe serve, que Deus dá tudo, do bom e do melhor para todos aqueles que servem seu filho, Jesus Cristo, e que ele, Tião, ainda vai conseguir as graças que esse Deus materialista concede ao pastor. Tião é o tipo de gente que acredita em tudo o que o pastor fala, completamente submisso”. Durante as eleições, o porteiro contou que “circulou pela sua igreja, pela voz ensebada do pastor, a informação de que os políticos de esquerda eram todos comunistas que queriam transformar o Brasil numa Cuba e que queriam mudar nossa bandeira para a cor vermelha, a cor do Cão. E ele acreditou. Disse ainda que os comunistas defendiam o uso de mamadeiras com bicos em forma de piroca, isso mesmo, chupetas em forma de rola, e que isso era uma estratégia do tinhoso para transformar nossas crianças em baitolas, condenando elas ao inferno. E ele acreditou! Andaram falando também que o governo do Partido dos Trabalhadores era associado a Satanás e que por isso preparava um kit contendo livros ensinando nossos filhos a serem veados. E ele acreditou”.
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Depois, disse que o pastor gritava: “Eles nos querem ardendo nas chamas do inferno”, rodopiando no palco, e todos urraram no templo, como possessos”. E contou que um morador do prédio, homem de letras, recatado, escritor premiado, outro dia chegou pra ele dizendo ter visto, da janela do prédio, uma passeata amarela. “Eram eleitores do Nefando berrando a plenos pulmões contra o aborto, contra Cuba, contra o Partido dos Trabalhadores, contra o comunismo, contra o esquerdismo, contra a cor vermelha de uma bandeira inexistente, contra a ideia de que a terra é redonda, contra aas vacinas, contra as escolas livres, contra o meio ambiente, contra tudo do bem e do bom”. Segundo ele “o fascismo tem que ser combatido a pau e pedra e fogo e bomba. Não há outro caminho. Ou então teremos um país triste, faminto, sem poetas”.
O porteiro José Matias disse ter ouvido deste mesmo morador que um tal de Bertold Brecht, teatrólogo, gostava de dizer que “A cadela do fascismo está sempre no cio”. E contou a ele José Matias, ter sabido que outro dia incendiaram museus e bibliotecas pelo país”. Esse morador, seu Luís Carlos, disse que viu lá da janela do apartamento dele, que “as avenidas, ruas e praças tinham sido tomadas por uma legião de demônios na forma de homens e mulheres, de todas as idades. Babavam, escarravam, exalavam um mau cheiro tremendo. Já tinha visto, estupefato, alguns deles lambendo as maçanetas dos vizinhos, arrastando-se pelo gramado, uivando. Eram criaturas assustadoras que se impunham à força pelas calçadas. Em bandos, vociferando, corpos pintados de verde e amarelo, por todo lado, batiam nas portas das casas conclamando as pessoas para sua caminhada pela cidade numa procissão de possessos”.
O pior foi quando ele contou que conseguiu “notar semelhanças entre os demônios e alguns conhecidos, vizinhos, policiais, professores, amigos distantes, vovôs e vovós de amigos, tios e tias, religiosos”. E garantia que essas pessoas “não eram assim, pelos menos não se mostravam dessa maneira. Todas muito cordiais, educadas, cheias de gentilezas”. E completava: “Essas criaturas um dia foram gente. E completava repetindo as palavras de seu irmão: “não é o teu colega de trabalho ali espancando aquele sem-teto? Sim, era ele que, junto com outros demônios de amarelo e verde, pisava o rosto do mendigo prostrado no meio da rua. Nos supermercados, asfixiavam negros e expunham o punho em riste, babando peçonha; E aquela senhorinha meiga da igreja apontando armas para os filhos de santo? E o que dizer daquele senhor tão requintado cuspindo no rosto do entregador de aplicativo? E aquele jovens universitários linchando as garota trans só por ser trans?”. E por último, disse que até pensaram em fazer alguma coisa, uma reação qualquer. “Mas era uma atitude suicida, pois eles eram muitos e tinham todo o poder nas mãos, apoiados que eram por militares de todas as forças que se omitiram da sua função de nos proteger, e foram convertidos às hordas demoníacas que nos dominaram. Era possível vê-los, os possessos, sob fardas, marchando pelas ruas, armados até os dentes, o braço direito estendido numa saudação ao Nefando”.
Relato impressionante o do porteiro, não é mesmo? Ainda bem que nem José Matias, nem o colega dele, Teo, nem o escritor Luís Carlos, nem seu irmão, nenhum deles existe ou existiu de fato. São todos personagens de ficção de “Os Possessos”, último romance de Leonardo Almeida Filho, Ed. Patuá, 2021.
Ufa! Ainda bem que é tudo de mentirinha, não é mesmo?
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