Francisco Funcia*, Bruno Moretti** e Carlos Ocké**
Este artigo, cujo título é o lema da campanha nacional do Conselho Nacional de Saúde (CNS), busca avaliar o risco que se encontra o financiamento do SUS em 2021, no contexto da retomada da política de austeridade fiscal e do recrudescimento dos casos de covid-19 no Brasil e no Mundo.
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É grave constatar agora a repetição dos erros cometidos pelo governo federal no início deste ano, especialmente a falta de coordenação para o enfrentamento da pandemia, em conjunto com os governos dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios.
Seria necessário planejar e executar um cronograma de liberação dos recursos, tanto para as compras diretas do Ministério da Saúde, quanto para as transferências financeiras do Fundo Nacional de Saúde para os Fundos Estaduais e Municipais de Saúde, segundo critérios pactuados na Comissão Intergestores Tripartite (CIT) e aprovados pelo Conselho Nacional de Saúde (CNS).
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Na verdade, o governo federal não tem tratado o enfrentamento da covid-19, no Brasil, com o rigor técnico-científico necessário para garantir o direito à vida. A lentidão do Ministério da Saúde para execução orçamentária e financeira dos recursos da ação orçamentária 21C0, quer na modalidade de aplicação direta, quer nas modalidades de transferências financeiras aos entes federativos, é uma das manifestações concretas desse descompromisso com a saúde da população brasileira.
PublicidadeMesmo havendo orçamento, os repasses aos entes foram reduzidos quase à metade entre abril e maio, mantido o baixo patamar em junho, ainda que com o aumento do número de casos e óbitos associados à covid-19.
O atraso dos repasses impedirá que os gestores apliquem a totalidade dos recursos recebidos até 31/12/2020, dentro da vigência do estado de calamidade, fixada por Decreto. Como a pandemia não acabou, nem acabará tão cedo, o encaminhamento de um projeto de Decreto ao Congresso Nacional para prorrogar o estado de calamidade pública até 31/12/2021 seria a medida mais racional a ser tomada por uma coordenação nacional de enfrentamento da covid-19.
A EC 106, de 2020, suspendeu regras fiscais no âmbito da União para viabilizar despesas temporárias e vinculadas ao combate à pandemia e a seus efeitos, com vigência restrita ao estado de calamidade, em princípio, até dezembro de 2020. Os valores já transferidos para estados e municípios constituem receita dos respectivos fundos de saúde e devem ser aplicados em ações de combate à pandemia. Pela legislação vigente, não há restrição temporal à execução dos recursos na ponta, mas é necessário conferir segurança jurídica aos gestores, diante de eventuais decisões de órgãos de controle que extrapolem a lei. Nesse sentido, um projeto de lei estabelecendo que os recursos podem ser executados em 2021 ou um parecer jurídico no âmbito da União são suficientes para maior conforto à realização do gasto.
Por outro lado, projetos de lei versando sobre desvinculação dos recursos extraordinários em relação à pandemia esbarrariam no que dispõe a EC 106. Dificilmente prosperaria o entendimento de utilização dos “eventuais saldos” de recursos constitucionalmente vinculados à pandemia em outras ações de saúde. O melhor caminho seria o oposto: no contexto do aumento dos casos, fixar juridicamente que a estruturação da rede de saúde visa ao enfrentamento da pandemia e a suas consequências, expressas, por exemplo, nas demandas represadas e maior procura pela rede pública de saúde, tendo em vista a queda da renda e o desemprego, que já atinge mais de 14 milhões de pessoas.
De qualquer forma, trata-se de uma questão de natureza conjuntural, que deveria ser resolvida com a prorrogação do Decreto de Calamidade Pública.
Prorrogado o Decreto, o Ministério da Saúde deve estabelecer de forma pactuada com os gestores e o CNS um plano de contingência, que oriente o uso de recursos de 2020 e 2021 para enfrentar a pandemia, compreendendo ações diretas de combate à covid-19, mas também seus efeitos. Desta maneira, ainda que tardio, seria possível planejar uma aplicação abrangente de recursos federais para estados e municípios com a previsão do volume destinado à área de saúde. Vale lembrar que ainda há R$ 6 bilhões para enfrentamento à pandemia no Ministério da Saúde que sequer foram empenhados e que podem ser perdidos, mesmo diante da maior pressão sobre a rede de saúde.
Tais temas não podem se sobrepor ao fato de que as regras de gasto têm impactos estruturais sobre o financiamento do SUS. Diante da retomada de tais regras em 2021 (especialmente a EC 95, de 2016), é necessário aprovar o piso emergencial para 2021 de R$ 168,7 bilhões, que é o objeto da petição pública do CNS (que conta com 600 mil assinaturas) e que está contemplado na Proposta de Emenda Constitucional – PEC n.º 36, de outubro de 2020. Trata-se aqui de um aspecto estrutural do financiamento do SUS, para enfrentar a indiferença do governo federal diante da pandemia ao propor um orçamento para 2021 no piso congelado pela EC 95, de R$ 123,8 bilhões, para o financiamento das ações e serviços públicos de saúde.
É fundamental que todas as entidades que integram o CNS enquanto representantes dos segmentos dos usuários, trabalhadores e gestores do SUS priorizem essa luta pela defesa do piso emergencial de R$ 168,7 bilhões como valor mínimo a constar no orçamento do Ministério da Saúde para 2021, que está em tramitação no Congresso Nacional. Há risco de o pleito ser atropelado pela base parlamentar que apoia o governo de modo a inviabilizar a votação de emendas para ampliar o valor de R$ 123,8 bilhões originalmente apresentado pelo governo, implicando perda de R$ 40 bilhões para o SUS em relação aos valores autorizados em 2020, mesmo em meio a demandas crescentes por serviços de saúde e a mais de 170 mil óbitos decorrentes da c,ovid-19.
*economista, professor da USCS e consultor técnico do Conselho Nacional de Saúde (CNS)
**economista e assessor no Senado Federal.
***economista, pesquisador do Ipea e vice-presidente da Abres.
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