Na ótica ocidental, a agressão ao escritor Salman Rushdie constitui uma agressão à liberdade de expressão – ambição frágil e que só consegue vicejar quando existe democracia. Uma não existe sem a outra. Mas, como vimos, não basta democracia. É preciso civilidade e vigilância permanente – como reafirmado enfaticamente nas manifestações de 11 de agosto. Essa agressão atinge a todos nós.
A história é trágica e curta. Salman Rushdie é um cidadão britânico de origem indiana e muçulmana. Em 1989, publicou um livro intitulado “Versos Satânicos” – obra considerada ofensiva ao Islã. Os aiatolás colocaram sua cabeça a prêmio – mais de 3 milhões de dólares. Num determinado momento, ele se arrependeu de ter publicado o livro. Mais tarde, arrependeu-se de ter se arrependido. Na sua concepção – e de muitos que conhecem os dois lados da história –, seu livro não desrespeita a religião, o Islã, o profeta ou o Corão. Ele critica o regime teocrático, suas interpretações e desvios de rota. Viveu escondido durante quase uma década, mas continuou publicando livros de ficção. Nos últimos 20 anos, começou a reaparecer em alguns eventos públicos – geralmente eventos de cunho literário – até que foi agredido na semana passada. Ironia do destino: foi agredido covardemente dentro de uma instituição dedicada a acolher escritores refugiados…
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A agressão – em casos como esse – não se limita ao indivíduo. É uma agressão à literatura, em geral. E, mais profundamente, é uma agressão à liberdade de expressão. Aqui entramos na questão de fundo: há limites para a liberdade de expressão?
Aos olhos de uma teocracia, as leis divinas e humanas se entrelaçam, predominando as primeiras. Ademais, uma teocracia – como entendida por uma linha de aiatolás do Irã – não encontra limites geográficos, ela se estende aos fiéis e infiéis onde quer que eles estejam. O livro de Rushdie foi considerado pelos aiatolás como um crime de blasfêmia – o próprio autor relaciona versos do Corão ao título do livro.
Para estabelecer uma comparação: num regime democrático, há limites da liberdade de expressão – por exemplo, ofender os poderes da República. A ideia de limites à liberdade de expressão é aceita em democracias: o direito de um termina onde começa o direito do outro. Mas não matamos os transgressores – as penas tendem a ser proporcionadas.
Numa religião, as penas podem se estender aos seus fiéis onde quer que eles estejam. O problema não está no princípio ou nos limites geográficos – está na dosagem: pena de morte? E, mesmo diante de manifestações que testam os limites – do sagrado, da ortodoxia, da decência, do mau gosto e de tantos outros critérios –, deve haver limites para as sanções – como a exclusão dos hereges do grupo. Desterro, pena de morte ou agressões físicas certamente não se encontram dentro desses limites.
Salmon Rashid não foi o primeiro nem será o último a “morrer pela boca”, como se diz popularmente. Sócrates foi condenado à morte por corromper a juventude. No mundo Ocidental, temos exemplos variados de extermínio dos dissidentes – Galileu e Giordano Bruno são apenas dois dos mais famosos entre os que afrontaram a Igreja, e Alexander Soljenitsin por ter afrontado o regime soviético. Nem só de religião se nutre a intolerância.
Misturar religião e governo sempre dá briga e confusão. Governo dá poderes e força que a religião não deve possuir. A Inglaterra e os Estados Unidos conseguiram soluções mais adequadas – reconhecem o exercício da religião como um direito das pessoas, mas separam com clareza os poderes de uma e de outra. Mesmo os rituais religiosos da monarquia britânica e sua participação como chefe da Igreja Anglicana, hoje, não passam de um ritual – da mesma forma que o juramento que os presidentes norte-americanos fazem com a mão na Bíblia. Já a Revolução Francesa – ao invés de se contentar com a separação dos poderes – tentou acabar com a religião e mergulhou em lutas intermináveis. Deu no que deu.
Mas não vivemos só de intolerância religiosa. No mundo do politicamente correto, a intolerância vem se tornando cada vez mais acentuada. Parte da liberdade envolve assumir os riscos que dela decorrem. E a condição para manter a liberdade é saber conviver com pessoas que pensam de forma diferente da nossa. A agressão a Rashid deve servir de alerta: o que hoje pode ser visto como pequenas intolerâncias logo se transformam em linchamento e exclusão das pessoas. Há um aiatolá vingativo dentro de cada um de nós.
É curioso que o primeiro livro que Salmon Rashid publicou logo depois de “Versos Satânicos” foi uma obra-prima sobre o poder da palavra. O livro se intitula “Haroun e o mar de histórias” – leitura deliciosa. Nele, Rashid descreve a perigosa aventura de ir em busca das palavras – as palavras que se desdobram em fantasias e se transformam nas histórias. Histórias que representam o triunfo da liberdade, a alegria de contá-las e o prazer de ouvi-las. As histórias estão lá, emaranhadas num mar de palavras. Mas, para que as histórias e suas versões sejam acolhidas, é preciso haver escuta. É preciso que as palavras sejam acolhidas – mesmo quando expressadas de forma inadequada. Expressadas com prudência e medida. Mas acolhidas, cada vez mais, com tolerância.
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