Buscando pensar em meios e modos de lidar com a realidade de nosso país, não podemos deixar de buscar em outros tempos as soluções encontradas para a resolução de problemas através das comunidades-terreiro. Elas representam uma resistência cultural, religiosa, filosófica, por conter os saberes acumulados por cerca de dez mil anos de história. O conceito de território para os descendentes de africanos está ligado às ideias de construir, preservar, cuidar e criar. Os quilombos provaram tal fato. No mês de julho que se findou comemoramos Teresa de Quariterê, também conhecida por Teresa de Benguela ,que administrou magnificamente seu quilombo, produzindo tecidos e rendas que caracterizam o Nordeste do país, além de possibilitar uma excelente qualidade de vida a seu povo, que sabia cuidar da terra, transformar o que plantava, fazer reservas para tempos difíceis e vender o que sobrava. Não havia fome, nem desabrigo nesses espaços.
Ao criar as comunidades-terreiro, as irmandades religiosas pretas recriaram o território africano, fazendo de cada espaço destinado a um orixá, uma representação de seu lugar de origem. Criaram um encontro coletivo, o barracão, onde todos voltavam a ser libertos, falando sua língua e homenageando suas energias da natureza. A ideia de um novo território fica bem clara nas expressões “da porteira para dentro e da porteira para fora”. Da porteira para dentro temos outra forma de ser e estar no mundo, recriando a terra de origem e louvando os ancestrais ilustres. Todos se tornam família extensiva, irmãos. Cantam juntos, comem juntos e acolhem a quem quiser a eles se juntar. O espaço conta com a mãe e seus filhos, que representam a filosofia de seu povo, do lugar, de identidade, acolhimento e historicidade.
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Cada espaço de orixá representa um território africano distinto, bem como cada canto e cada mito revelam pensamentos e feitos que regem e regulam o viver comunitário e individualizado. Cuidar para que a Lei 10639/03 seja efetivada é primordial para o desenvolvimento pleno de um país que conta com cinquenta e sete por cento de sua população afrodescendente e que lida com a diversidade, dando acolhimento a todos, independentemente de seu credo ou origem.
Nossa herança africana se revela em nossas escolas de samba, criadas por sacerdotes e sacerdotisas de comunidades terreiro, sendo que o primeiro enredo temático organizado por Paulo da Portela se voltava para a educação, tendo como alegoria um imenso quadro de escrever. Neste país continental as vozes e melodias de Paulo da Portela, Cartola e Ismael Silva percorreram todo o país, inspirando a criação de novas Portelas e Mangueiras por todos os cantos, por conta da Rádio Nacional. Nossas vozes pretas se fizeram presentes graças ao sistema de rádio que precisa ser mantido. Trabalhei mais de trinta anos na Rádio MEC, sendo a primeira coordenadora nacional do Projeto Minerva, que em um ano atendeu a cerca de dez mil professores leigos. A permanência da EBC é primordial para a difusão educativa, para que possamos levar informações e condições de bom viver a todo o país, que é continental.
A comunicação que permita troca de informações e construção conjunta de saberes possibilitará a criação de um país que leve todo o seu povo em consideração. Precisamos ouvir as periferias e aprender com elas, entendendo que quem vive em determinados territórios e com muitos problemas tem soluções boas para eles. Precisamos deixar de achar que nossas ideias são melhores por termos uma escolaridade maior ou um acúmulo de diplomas. Ouvir quem vive nos territórios e buscar com eles as soluções para o país, é ser político. Entender que todos tem direito a bom atendimento seja no SUS ou num hospital particular é simplesmente cumprir os princípios democráticos, já que todos são iguais perante a lei. Nosso país só será realmente uma nação quando levar todos os seus habitantes em consideração, respeitando a maneira de ser, pensar e orar de cada um. Somos diversos e por isso absolutamente necessários, pois aprendemos com essa diversidade, que amplia nossos horizontes, nos torna mais ecléticos, mais tolerante e, com certeza, muito melhores e mais felizes.
Se faz necessário reconhecer a importância e o pensamento das mulheres pretas brasileiras que vem criando seus filhos com muito garra e muito trabalho, sozinhas em sua maioria, e que continuam sendo discriminadas, espancadas e mortas em nossa sociedade machista e preconceituosa.
Que tenhamos coragem de cumprir nossas leis, trazendo as tradições culturais pretas e indígenas para as universidades, respeitando a maneira muito própria de ser de cada tradição, entendendo que todos são iguais perante a lei, que se acredita em liberdade de ser em um país laico, que tem uma extensão territorial imensa e que precisa reconhecer todos aqueles que o construíram com o seu trabalho e os que aqui já estavam quando outros chegaram. Reconhecer as terras quilombolas e demarcar as terras indígenas é um direito adquirido pelo povo que criou e preserva este território.
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