Quarta-feira. Emanuel e Jaci chegaram pontualmente no Espaço Religioso escolhido por Oxalá. Eles gostavam quando os encontros eram nos terreiros de Matriz Africana. Jaci sempre vibrava com os sons dos atabaques, dos abês e dos agogôs, que, para ela, eram semelhantes aos tambores, bastões e chocalhos usados nos cantos de seu povo. Surpreenderam-se com o predomínio do vermelho e do preto nas vestimentas das pessoas e decorações, que contrastavam com o branco do garboso traje de Oxalá. Sentaram-se. Neste momento Oxalá se aproximou, portando uma reluzente bandeja. Em gentil gesto que lembrava a incorporação de um garçom, inclinou-se e serviu aos amigos uma porção generosa de feijão, pipoca e amendoim torrado.
– Que bom vocês terem vindo, meus amigos – saudou Oxalá. – A nossa Casa fica muito honrada e iluminada com o esperançar que vocês carregam no coração.
– Èpa Bàbá!” – saudou Jaci, apressadamente.
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– Sáà wúr àse Bàbá! – retribuiu Oxalá.
– Estamos adorando tudo! – continuou Jaci. – Emanuel até me cochichou ao chegar: “Alegrem-se sempre!”
– Está nos Salmos, Jaci – sorriu Emanuel. – “Batam palmas, vocês, todos os povos!”
Publicidade– Que bom vocês terem gostado – mostrou-se feliz, Oxalá. – Mas eu marquei aqui porque era a minha vez de contar uma história, lembram-se?
– E como eu poderia esquecer? – retrucou, de pronto, Jaci. – Eu adoro aprender, ainda mais quando se trata do mundo dos Orixás. Pode começar, amigo!
– E olhe a sua responsabilidade, Oxaguian! – provocou Emanuel. – A história da origem do açaí contada pelo povo mawé, tão bem narrada por Jaci, vai ser difícil de ser superada.
– A que você contou sobre o bom samaritano também é bíblica – brincou Oxalá.
– Como assim? – interrogou Jaci, sem esconder a sua curiosidade.
– Eu convidei Obaluaiê para o nosso encontro– respondeu Oxalá. – Quero que conheçam a história dele, bem assim como ele superou o abandono materno e as feridas proliferavam em sua alma e em seu corpo.
– Eu presenciei essas chagas quando a hanseníase era tratada pela comunidade como uma lepra causada por demônios – consternou-se Emanuel. – E as pessoas eram abandonadas e jogadas, sem piedade, em ambientes insalubres e desumanos.
– Com Obaluaiê não foi diferente, Emanuel – confirmou Oxalá. – Nanã, a mãe dele, em momento infeliz de angústia e medo, abandonou o nosso orixá ainda pequenino, quando percebeu que o seu filho tinha nascido com terríveis doenças na pele.
– O estado puerperal gera perturbações incompreensíveis – atalhou, Jaci, recusando-se a exprimir qualquer acusação à mãe de Obaluaiê.
– Eu sei que vocês não estão aqui para falar de Nanã – ouviu-se a voz de Obaluaiê, trajando uma imponente vestimenta de palha-da-costa, que o cobria assim da cabeça aos pés. Destacava-se também um lindo xarará, confeccionado com folha de dendezeiro e ornado com búzios, palha, fio de conta e cabaça.
– Abáo, Xapanã! – saudou Oxalá. – Claro que não! E nem de Iemanjá, que cuidou de você como filho e tratou de suas feridas.
– Ótimo, então! – brincou Obaluaiê. – Em tempo de muita dor e insensibilidade, eu queria mesmo é falar de superação e cura.
– É o que queremos escutar, amigo – tranquilizou-o Emanuel. – E não poderia ser escolhido lugar tão inspirador. Olha quantas pessoas em nossa volta que, apesar das graves doenças em que estão acometidas, estão aqui na certeza da cura.
– Então vamos à história – interrompeu Jaci, impaciente. – Vocês sabem que não posso abandonar a noite.
– Você manda, Oshupá! Contarei o que narram sobre mim. Mas, antes, vou mandar servir mais pipocas, para dar um clima – comentou, humorado, Obaluaiê. – Como Oxalá adiantou, eu nasci com várias doenças de pele, algumas até exalando um odor que assustavam os orixás e as pessoas.
– Você foi encontrado por Iemanjá em um cesto no rio, igual a Moisés, não foi? – interrompeu Jaci.
– Foi sim, pequena Lua. Mas eu não quero falar desse período da minha vida, até porque já perdoei Mãe Nanã – retomou Obaluaiê. – O tempo passou e me tornei um guerreiro lendário, mas, ainda assim, não era convidado para as festas em razão da minha aparência. Um dia Ogum me convidou para os festejos que estava organizando, e sugeriu que eu me cobrisse com a vestimenta de palha que estou usando agora. Assim ninguém ficaria assustado com a minha aparência. Quando o xirê estava animado e todos dançavam esquecidos de mim, Iansã, discretamente, soprou a minha roupa, deixando visível as minhas feridas. E antes que eu me cobrisse de vergonha, imediatamente compreendi o gesto de Iansã. Das minhas feridas pularam deliciosas e perfumadas pipocas, que passaram a ser devoradas avidamente pelos convidados de Ogum. E, repentinamente, os presentes passaram a enxergar em mim um jovem belo, encantador e charmoso.
– Este episódio fez nascer uma grande amizade entre Obaluaiê e Iansã. Desde então, os dois reinam e partilham juntos o poder de abrir e interromper as demandas dos mortos sobre as criaturas que criamos – concluiu Oxalá. – E lição que tiramos dessa narrativa tem relação com a empatia, o poder de enxergar uma pessoa além do seu corpo físico. É o que fez Iansã ao revelar a Obaluaiê que o preconceito não permitia enxergar.
– E vocês sabem como ninguém que as pessoas que estão aqui, mesmo com as feridas e as marcas externas das doenças em que estão portando, querem o mesmo – afirmou o Orixá da transformação, da cura e dos doentes. – Elas querem ser curados da indiferença, da ausência de respeito com a dor que cada um sente, do desamor em razão das chagas que portam.
– Lázaro! Lázaro! – suspirou, Emanuel. – Não é que diante do milagre da ressureição, tem gente que apenas se interessa em saber como ficou o estado físico do corpo do ressurrecto.
– Nós sabemos! Nós sabemos! – emendou Obaluaiê. – Sabemos que zombam dos que morreram de Covid-19, imitam em gestos grotescos a agonia de pessoas agonizando por falta de oxigênio, não demonstram qualquer empatia pela dor de uma família que perdeu entes queridos, fazem gestos obscenos para os que buscam a cura pela vacina negada.
– Negam tudo que é empatia! – concordou, triste, Oxalá! – Negam até pela alma da mãe.
– Eu aprendi que enxergamos o mundo pelo olhar do coração – concluiu Obaluaiê a sua narrativa. – E quem apenas enxerga ódio, preconceito e maldade nas pessoas é porque, na verdade, carrega o ódio, o preconceito e a maldade no próprio coração. Enxerga-se.
– Então uma saudação a Iansã, que enxergou o coração de Obaluaiê – propôs, a sua narrativa.
– Eparrei Oyá! – gritaram todas as pessoas presentes, com as mãos balançando acima da cabeça.
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