Como mencionado em outros artigos que escrevi para a coluna, a fotografia tem um papel fundamental na sociedade, sobretudo, no processo de construção da memória e de transformação social. Contudo, neste artigo proponho uma breve reflexão sobre a fotografia na construção de um imaginário social brasileiro acerca da população negra quando o assunto é segurança. Para isso, voltaremos alguns séculos…
A descoberta da câmera fotográfica, em 1839 na França, como um dispositivo que captava a realidade foi capaz de modificar o cenário cultural e científico. No aspecto cultural, ser retratado simbolizava ter status e pertencer a uma determinada classe social, enquanto no campo cientifico, a fotografia serviu aos pesquisadores europeus como um instrumento de informação ao possibilitar a diferenciação física, entre homens e animais, e afirmação ao servir de embasamento para a teoria evolucionista e o racismo cientifico. Uma vez escritas com o auxílio do registro fotográfico essas teorias iriam durar por muitos séculos ao serem armazenadas na memória visual e institucional, além de reproduzidas socialmente.
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No Brasil, a primeira fotografia foi tirada em 1840 e amplamente disseminada por volta de 1860 a um preço mais acessível devido aos novos recursos técnicos. Como podem imaginar, o acesso a este dispositivo moderno, no Brasil Colônia, estava restrito/destinado aos membros da elite deixando de fora a maior parte da sociedade brasileira, a população negra.
Apesar de grande parte desta população estar submetida ao regime escravocrata, a presença de pessoas negras nas fotografias da época não era incomum, pois além de seus “donos” os levarem para serem retratados em álbuns de famílias como uma demonstração de posse, os negros livres e alforriados, por vezes, usufruíam do registro imagético visando a representação de sua liberdade.
Para essas pessoas, ter sua imagem capturada ao utilizar determinadas peças de roupas, semelhantes aos da elite época ou um “simples” sapato, significava se apropriar dos códigos sociais para demonstrar sua liberdade a uma sociedade excludente.
Evidentemente, a tentativa de um apagamento identitário e cultural fundamentado no racismo, não possibilitava a liberdade plena e muito menos a ascensão, mobilidade, social para os livres e alforriados. Para além das pinturas de Debret, uma imagem da população negra vinha sendo construída fotograficamente em uma dupla perspectiva: demonstração de poder e posse, por parte dos senhores, e a inversão do estigma, que os colocava como suspeitos, pelos negros retratados.
A suspeição desses sujeitos foi construída historicamente por uma ideologia de dominação racial conciliada a políticas públicas que separava e excluía do âmbito social aqueles que não se enquadravam adequadamente a uma sociedade burguesa com referências europeias.
Em termos de segurança pública, tem-se a utilização da fotografia como um instrumento de identificação e registro, desde a sua invenção, no cenário internacional. No contexto brasileiro, a Galeria de condenados da Coleção Dona Theresa Christina produzida em 1870 na Casa de Correção, em posse da Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro, demonstra a importância que a fotografia teve na construção dos sujeitos e no controle desses corpos dentro e fora da prisão.
Devido aos avanços tecnológicos e aos investimentos da indústria cultural, a fotografia se popularizou, em escala global, como um instrumento de comunicação e informação social através de dispositivos como câmeras de alto desempenho, tablets e smartphones.
Se antes nos deparávamos com o uso da fotografia no antigo “retrato falado”, denominada atualmente de Representação Facial Humana, hoje nos deparamos com a Inteligência Artificial por trás das câmeras que fazem o reconhecimento facial em tempo real.
Você deve estar se perguntando… Qual é a relação entre esse histórico fotográfico e o futuro quando falamos de segurança pública e privada? Afinal, parece que essa evolução tecnológica nos permitirá alcançar o sonho, ou ao menos a sensação, de estarmos seguros.
Infelizmente esse breve histórico da construção imagética da população negra fundamentada na discriminação e no uso de uma ideologia de dominação, não se apagaram na contemporaneidade. Pelo contrário, a indústria, as tecnologias de comunicação e os dispositivos de controle evoluíram e sofisticaram as formas de discriminação racial e de gênero.
Os documentários Coded Bias e o Dilema das Redes, disponíveis na plataforma Netflix, são frutos de pesquisas acadêmicas, investigações e movimentos ativistas que revelam como as tecnologias de segurança e de comunicação são construídas com um viés discriminatório.
A preocupação sobre o uso de dados, a utilização do reconhecimento facial nas políticas de segurança e a ética dos desenvolvedores e cientistas, fizeram com que mais de 2.000 cientistas fizessem um abaixo-assinado para impedir danos e a reprodução de injustiças.
O racismo e o punitivismo não são novidade para a mídia e muito menos para os atores políticos brasileiros, sobretudo, no atual governo e de seus apoiadores. Isso se torna evidente quando os políticos ao ignorarem esse histórico, propõe o uso desses dispositivos de controle nas instituições que garantem a segurança da população brasileira que é majoritariamente negra, pobre e criminalizada.
A Rede de Observatórios da Segurança fez um levantamento sobre as prisões com a utilização do reconhecimento facial e constatou que 90,5% das pessoas presas são negras e, assim como quem desenvolve, o perfil de quem sentencia é o oposto dos encarcerados.
As fotografias e as tecnologias de comunicação são difundidas, viralizam, os nossos dados são tratados de forma nebulosa e os dispositivos tecnológicos continuam a (re)produzir uma linguagem que representa o passado e se projeta no presente.
Não pretendo encerrar este artigo com uma constatação, mas com a mesma pergunta que a mulher negra que fotografei no protesto pela morte do jovem Pedro Gonzaga faz em seu cartaz: Quando segurança virou sinônimo de matar?
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