O coronavírus desembarcou no Brasil num dos piores momentos da nossa história, permeada pela alta turbulência social, incertezas políticas e uma economia estagnada como mostram os dados analisados nos anos recentes. Ainda em fevereiro, nos deparávamos com crises de educação, saúde, meio ambiente, com crescimento da violência de gênero e de outros tipos, com ataques à imprensa livre, taxas de desemprego consistentemente altas e, absurdo, com aumento da fome e da pobreza extrema num país tão rico e capaz como o nosso.
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Se a dimensão de cada um desses problemas já não era pequena, ela se agrava frente a um governo incapaz de tratá-los com seriedade. Nada nos preparou para o tsunami que o coronavírus irá causar em todas estas áreas, nem para seu impacto dramático já em curso na vida da maioria da população brasileira. No momento em que escrevo, sete pessoas já morreram, 621 casos estão confirmados é muito, muito grave: enquanto observamos a alta curva de infecção, revela-se a incapacidade entre os poderes da República de responder de forma rápida e coordenada a uma crise sanitária e econômica sem precedentes na história recente da humanidade.
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O coronavírus não apenas ataca corpos e ceifa vidas, mas corrói nosso tecido social marcando de forma profunda os afetos (alta letalidade) e relações humanas. Ele também ataca cadeias de produção e já infectou agressivamente o sistema financeiro. A cada dia ele sobrecarrega setores que, vale lembrar, não terão capacidade estrutural para lhe responder adequadamente porque, depois de apenas um ano da desastrosa gestão Bolsonaro, os resultados do PIB foram pífios e os investimentos públicos feitos ao longo de décadas para construir e organizar políticas e setores do Estado, essenciais para enfrentar esta pandemia, foram descartados, jogados no lixo.
A verdade é dura, mas pode ser enfrentada. Este governo nada construiu, pouco propôs e muito debilitou o país e exemplos desse despreparo nacional são os resultados nefastos da Emenda Constitucional 95/2016, que impediu investimentos no sistema de saúde na ordem de pelo menos R$ 20 bilhões; da maior precarização das relações trabalhistas e das mudanças na seguridade social que acabaram por vulnerabilizar ainda mais, com aval de Bolsonaro, a vida de milhões de brasileiros/as. Tanto a EC 95/2016 quanto as reformas mencionadas foram aprovadas via narrativas mentirosas, que as apresentavam como soluções, enganando de forma perversa uma população despreparada, refém de políticos de má fé ou igualmente despreparados.
Mas a mentira tem perna curta e, diante dessa imensa crise, o óbvio explode: não são medidas de austeridade e muito menos estas reformas que ajudarão a enfrentar o novo vírus, como insiste Paulo Guedes, um entre os vários ministros de Bolsonaro que são incapazes de produzir, de fato, soluções. Ou seja, quando mais se precisa de um governo capaz de cuidar das pessoas e de acalmar corações em tempos de incertezas, mais se percebe que este governo não existe, mais se percebe o seu caos. Ao escancarar o elo entre saúde, educação, renda, condições de moradia, violências de gênero, pobreza e fome – só para citar alguns – o coronavírus evidencia ainda mais a total incapacidade do executivo brasileiro e explicita o quanto estamos na contramão do desenvolvimento sustentável.
Esta pandemia revela ao mundo a necessidade de Estados coesos e responsáveis, centrados em garantir direitos básicos para todas as pessoas e tem sido alentador ver tantos movimentos de solidariedade global acontecendo. Além disso, vários paradigmas começam a ruir, é interessante notar que países capitalistas como Alemanha, França, Espanha, por exemplo, já entenderam o recado de que não é ao “Deus Mercado”, mas ao Estado que cabe o papel de regular e organizar respostas coletivas e amplas, que coloquem as pessoas em primeiro lugar. No Brasil, infelizmente, demora-se para aprender e pouco se reflete e, por enquanto, o que torna a covid-19 ainda mais desafiador é essa nossa outra grave crise, também sem precedentes, de liderança.
No caso do Congresso Nacional, com tantas disputas em questão, não espera-se, inocentemente, que haja acordo em todas as agendas. Mas numa hora de tamanha gravidade – e o cenário vai piorar, em todos os sentidos – exige-se pactuar um foco comum, antes que seja tarde demais. O PSDB deixou o leme da nação há dezoito anos, o PT já se foi há quatro. Depois de um ano turbulento de MDB e desse ano desastroso do governo Bolsonaro, é urgente todos e todas descermos dos palanques. A sociedade, suas estruturas e relações como as conhecíamos estão mudando rapidamente e teremos que nos reinventar, mas a manutenção de direitos, de serviços públicos que nos ajudam a viver melhor, precisam voltar a ser prioridade.
Nunca nos fez tanta falta uma gestão pública transparente, com coesão entre os poderes da República e está difícil ter esperança diante de um governo federal que, sem respostas, só sabe atuar com afinco na produção de novas crises.
O coronavírus chegou e Jair Bolsonaro e filhos já não podem mais esconder que eles nada têm a contribuir para o desenvolvimento sustentável no Brasil e visivelmente não se importam com as necessidades mais básicas do país. Seja na Presidência da República, no Congresso Nacional ou na Assembleia do Rio de Janeiro, todos mostram o mesmo padrão de comportamento: questionável, para dizer o mínimo, equivocado quando se trata de fatos e por várias vezes suspeitos de ilegalidades. Não era novidade o fato do presidente tensionar relações na tentativa de esvaziar as instituições nacionais. Mas a gravidade das atitudes descabidas (em série) da maior autoridade nacional – da negação de evidências à possibilidade de exposição criminosa de pessoas ao coronavírus – parece, finalmente, abrir os olhos e mobilizar as panelas de pessoas e lideranças até da direita: o Rei, finalmente, está nu.
Felizmente, parece haver limites para tudo. Não é de estranhar que nos últimos dias três pedidos de impeachment tenham sido protocolados contra Jair Bolsonaro na Câmara Federal – o primeiro no dia 17, pelo deputado distrital Leandro Grass (Rede-DF), o segundo no dia 18 por deputados do PSOL e o terceiro dia 19, por Alexandre Frota (PSDB-SP). Além disso, artigos jurídicos ressaltam como, em pouco mais de um ano de mandato, pelo menos dez crimes de responsabilidade foram cometidos por Bolsonaro. A peça protocolada por Grass, por exemplo, cita ao menos cinco violações da Lei 1.079/1950. O pedido dos deputados do PSOL aponta que Bolsonaro cometeu crime de responsabilidade ao enviar mensagens a seus apoiadores “convocando” para as manifestações do dia 15/03 e por ter participado dos atos descumprindo a orientação de evitar aglomerações durante a pandemia covid-19.
Em uma hora como essa, não é saudável que o Congresso Nacional coloque panos quentes. Os pedidos – já são 13 até o momento – precisam ser analisados com urgência, juntamente com um pacote que inclua, no mínimo, a revogação imediata da EC 95/2016 e o aumento da proteção social, com disponibilização de recursos que, de fato, ajudem as pessoas a praticarem o necessário distanciamento e contemplem a imensa fatia da população que, independente da pandemia, já não tinha renda, casa ou sequer acesso a alimentos. É hora agora, mais que nunca, de retomar princípios constitucionais; de reforçar os acordos de cooperação intrafederativos e os de âmbito internacional, de fortalecer laços de solidariedade, respeito, justiça social. É preciso cuidar das pessoas. É preciso cuidar de todas as pessoas. E isso, sabemos, não será possível com a saúde em agonia, a educação violentada e uma economia cambaleante conduzidas por líderes ineptos, irresponsáveis e violentos.
O coronavírus, já se sabe, não vai passar tão rápido, ele apenas acabou de chegar. Nossa única chance de mitigar o estrago anunciado é impedir a derrocada das instituições brasileiras. Para tal, exige-se coragem. É preciso passar álcool em gel nas mentes tacanhas que atrapalham o desenvolvimento e cuidar da política à luz do que nos orienta a Constituição Federal. Nesta hora, tão grave, uma instituição que não poderá, de jeito nenhum, lavar as mãos é o Congresso Nacional.