Conta-se que no princípio havia uma única verdade no mundo. Entre o Orun[1] e o Aiyê[2] havia um espelho. Daí é que tudo que se mostrava no Orun materializava-se no Aiyê. Ou seja, tudo que estava no mundo espiritual refletia exatamente no mundo material. Ninguém tinha a menor dúvida sobre os acontecimentos como verdades absolutas. Todo cuidado era pouco para não quebrar o espelho da verdade. O espelho ficava bem perto do Orun e bem perto do Aiyê.
Naquele tempo, vivia no Aiyê uma jovem muito trabalhadora que se chamava Mahura. A jovem trabalhava dia e noite ajudando sua mãe a pilar inhames. Um dia, inadvertidamente, perdendo o controle do movimento ritmado da mão do pilão, tocou forte no espelho que se espatifou pelo mundo. Assustada, Mahura saiu desesperada para se desculpar com Olorum. Qual não foi a sua surpresa quando O encontrou tranquilamente deitado a sombra do Iroko [3]. Depois de ouvir suas desculpas com toda a atenção, declarou que dado aquele acontecimento, daquele dia em diante não existiria mais uma única verdade e concluiu: “De hoje em diante, quem encontrar um pedacinho de espelho em qualquer parte do mundo, estará encontrando apenas uma parte da verdade porque o espelho reproduz apenas a imagem do lugar onde ele se encontra [4].”
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Falo do pensamento africano, uma das verdades deste meu lugar que é uno e múltiplo. Verdade que, por sua própria condição de re-existência, é resultante da complexidade de etnias que se imbricaram na formação de uma outra cultura, de um outro povo africano na diáspora. Assim nasceu o povo afrodescendente que se esparramou pelo mundo, onde o presente o passado e o devir não se separam em categorias estanques. Falo de um lugar que conheço e faz parte do mundo ao qual pertenço. Não por escolha, mas por uma lógica de pertença ancestral que me envolve numa condição de ser sendo. Compreendo esta relação como expressão ontológica da minha condição humana essencial. O sentimento da pertença ancestral não autoriza a me separar de outros fenômenos que vivencio enquanto indivíduo e ser social.
Sou feita[5] de Oxum. Esta é uma condição que me autoriza a olhar o mundo como parte de mim mesma. Considerando um jeito de pensar que vai além do domínio do cognitivo, acreditamos que estamos no mundo e o carregamos dentro de nós na multiplicidade de elementos da natureza que nos compõem.
PublicidadeAs vivências do povo de santo se plasmam nos confins de um mundo arcaico instaurado pela ancestralidade magnificada no seu caráter essencial e numinoso. Compreendemos, então, que o mundo em que vivemos é uma realidade oriunda também de nossas próprias percepções, que estão na razão dos sentimentos humanos numa implicação do além do vivido. Com efeito, a nossa consciência apenas reflete à maneira de um espelho a luz originária do que percebemos. Pertencemos ao mundo de intensas possibilidades criadoras. Mundo que nos contém e que nos enche das suas mais diversas formas de energias vitais e interdependentes como uma trama que produz a si mesmo.
Estamos falando de eventos que acontecem num espaço-tempo multirreferencial em que o estado e os movimentos dos corpos materiais e a distribuição desses corpos determinam configurações míticas envolvendo a invariância da matéria em suas transformações que afetam vivências e o imaginário. Neste sentido, os rituais, presentes na comunidade, sintetizam momentos importantes de todos os tempos que constroem as pessoas e a comunidade.
O passado jamais segue o ser, mas o precede. É o passado que, caminhando na frente, vai adaptando-se à realidade do presente como tradição. Pensando deste modo, estamos diante da complexidade de uma perspectiva dialógica. A matéria e o espírito se reconhecem e formam uma unidade não linear num processo dinâmico repleto de subjetividades.
Por outro lado, entendemos que a ciência convencional sempre buscou eliminar a subjetividade das suas explanações o que dificultaria compreender a nossa própria subjetividade como objeto científico. Aí é que estabeleço um mergulho em mim mesma e na minha comunidade no seu aspecto mais arcaico e paradoxalmente atualizante. Mergulho e, ao emergir, trago um outro tempo repleto de novidades que só podem ser consideradas como transitórias.
E por não se tratar de recair em crenças puramente mágicas, a educação inspirada nas subjetividades deste imaginário é mitopoética e polissêmica. Esta é uma condição que sugere a fluidez, a descristalização e a transgressão do modelo cultural instituído, fechado no assujeitamento de pensamentos lineares. Por analogia, o que prefiro chamar de feitura ao invés de iniciação é por entender que esse é o momento de se fazer a cabeça, preparando aquele que está sendo feito para aprender a aprender.
Neste caso, cada um estaria voltado para a sua melhor forma de aprender na vida e no caminho da emoção de cada dia. Aprender na vida também como poesia. Aprender descobrindo novas estruturas internas. Aprender percebendo o extraordinário no cotidiano. Aprender, nesta condição, seria preparar-se para viver o cotidiano na sua complexidade criadora gestando novas sensibilidades e sentidos.
Viver no terreiro, sendo feita ou não, é estar pronto para construir seus saberes a partir de um novo espaço interno. Um espaço vivo e estimulado para aprender com todos os acontecimentos. A aprendizagem inclui atos celebrativos que estimulam e agregam tudo que dá vida à vida comunitária. As educadoras da Eugênia Anna passaram por esta experiência vivenciando as possibilidades de compreender o mundo como algo que se move dentro e fora de nós mesmos. É um lançar-se além de si para o encontro de outras vivências, outras leituras e da compreensão de outros códigos experienciais. No Afonjá, vive-se um mundo africano tradicional onde tudo existe em potência. Tudo está para acontecer ou dissipar-se. Vive-se o mundo das potencialidades.
Referências:
[1] Mundo espiritual
[2] Mundo natural
[3] Árvore considerada sagrada para os iorubanos. No Brasil foi substituída por gameleira branca.
[4] História mítica adaptada por Vanda Machado para formação de educadoras e educadores da Rede Municipal de Educação em Salvador
[5] Linguagem usual para pessoa que passou pela experiência de fazer o santo, fazer a cabeça, se tornar omo orixá, filho do orixá ou iniciado como se diz na linguagem antropológica.
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