Fernando de Carvalho Teixeira*
Segundo o documentário clássico “Arquitetura da Destruição”, o holocausto nazista teve início com os doentes e deficientes, não com os judeus. O plano Aktion T4, lançado pela chancelaria alemã no início de 1940, dois anos antes dos primeiros campos de extermínio, levou à morte 300 mil pessoas internadas em sanatórios e hospícios na Alemanha e territórios ocupados. O programa promovia a “eutanásia” de pessoas com deficiência ou doenças físicas e mentais crônicas, em continuidade a políticas de esterilização em massa iniciadas anos antes.
Apesar da brutalidade, o plano promovido pela Aktion T4 não poderia ser considerado um genocídio pelo texto do Estatuto de Roma, de 1998, que rege o Tribunal Penal Internacional. Segundo o estatuto, o genocídio visa a um “grupo nacional, étnico, racial ou religioso”. Ou seja, pelo texto, os nazistas promoveram o genocídio de judeus, ciganos e demais povos não-germânicos, mas não de deficientes, homossexuais, comunistas e criminosos comuns. Segundo estatuto, o plano Aktion T4 poderia ser considerado um “crime contra a humanidade”.
Leia também
Um olhar mais atento revela que a definição do Estatuto de Roma faz pouco sentido. Manual lançado em 2010 pelo Instituto para Investigações Criminais Internacionais (IICI), com apoio da União Europeia e Nações Unidas, esclarece que o conceito de genocídio deve ser avaliado caso a caso.
O grupo protegido não precisa ter necessariamente fronteiras bem definidas e deve-se levar em conta o contexto histórico-social onde se insere a conduta criminosa, bem como a intenção pessoal dos perpetradores.
A principal diferença entre “crimes contra a humanidade” e o genocídio é que os crimes contra a humanidade visam discriminação, e o genocídio, eliminação. Há críticas variadas ao conceito vigente de genocídio por ignorar definições político-sociais mais amplas do conceito de vítima; no parlamento europeu já se discute o conceito de “ecocídio” para reprimir crimes ambientais em massa.
PublicidadeA redação escolhida para o tipo penal genocídio surgiu no contexto do pós-Segunda Guerra com um recorte específico para representar os horrores do holocausto, produzindo uma definição muito restrita. O denominador comum para massacres em grande escala não é o tipo de alvo, mas na ideia mais ampla de eliminação de uma “minoria” em nome dos interesses de uma “maioria”. Houve ao longo do século XX diversas políticas de extermínio de minorias políticas e identitárias sob variadas designações, nem por isso menos graves.
Um dos critérios possíveis para orientar um massacre são fatores médico-biológicos, tal qual ocorreu no Aktion T4. Há hoje a emergência de um debate nessa linha no contexto das consequências da teoria da “imunidade de rebanho”, proposta por alguns grupos como estratégia de combate à pandemia do Covid-19. Segundo essa teoria, é preciso aceitar algum grau de mortalidade entre a população, sobretudo nos grupos de risco, como idosos e pessoas com comorbidades, a fim de se preservar a economia e o bem-estar da maioria. Medidas amplas de prevenção, como o distanciamento social, o uso de máscaras e até mesmo a vacinação em massa são consideradas ineficientes e inapropriadas. A contaminação deve ser tolerada e até estimulada a fim de que uma parcela substancial da população desenvolva naturalmente defesas biológicas contra o vírus. Alguns grupos específicos, como idosos, podem ser mantidos isolados, mas há pouca preocupação com a viabilidade ou eficácia da medida.
Cálculos feitos no início de 2020 com base na metodologia do Imperial College de Londres concluíram que, sem medidas de contenção, teríamos no Brasil mais de um milhão de mortos em decorrência da pandemia. Supondo uma contaminação mínima de 70% da população para se atingir a imunidade de rebanho, haveria ainda cerca de 14 milhões de pessoas com sequelas cardíacas, circulatórias, renais e neurológicas duradouras. Medidas ineficazes e insuficientes de prevenção contribuíram para a morte de quase meio milhão de pessoas, em grande parte atribuíveis a um discurso oficial de negação, negligência, fatalismo e indiferença, típicos da tese da imunidade de rebanho, complementado pela disseminação de curas mágicas e placebos.
A escala da catástrofe parece sugerir uma espécie de “genocídio sanitário”, o qual soma elementos do genocídio clássico a aspectos médico-biológicos, se caracterizando por equiparar a cura da doença à eliminação do doente. Nesse projeto a vitimização de minorias biologicamente delimitadas é considerada um dano colateral necessário para se chegar ao bem-estar da “maioria”. Nisso, o genocídio sanitário se assemelha a projetos genocidas convencionais, nos quais a eliminação de certos grupos é uma ação necessária para se atingir objetivos políticos mais amplos, como projetos revolucionários ou nacionalistas.
É preciso também distinguir o genocídio sanitário do crime contra a saúde pública, previsto em nosso Código Penal. Falta aos crimes comuns a escala necessária a um projeto genocida, que envolve o extermínio, no todo ou em parte, de um grupo populacional. Isso exige, em regra, participação estatal.
Segundo o manual do IICI, a existência de um plano ou política governamental não é necessário para a caracterização do crime, mas ajuda a evidenciar sua ocorrência. Outra característica do genocídio é não exigir ações armadas ou violentas para se configurar; atos meramente omissivos caracterizam o crime. Também é indiferente que a política seja voltada à população “A” e acabe por vitimar a população “B”; vale a intenção do autor.
Temos que o conceito clássico de genocídio é muito estreito para acomodar políticas negligentes na gestão da crise do Covid-19, baseadas na tese da imunidade de rebanho. Contudo, isso decorre mais de uma legislação falha do que da ausência de uma conduta apta à classificação segundo uma leitura mais crítica e profunda do tema.
A linguagem comum abusa do termo “genocídio” para classificar qualquer tipo de atrocidade, mas seu uso para descrever a realidade do Brasil atual não é de todo infundada. Como vimos, é plausível a ocorrência de uma modalidade derivada, mas ausente na legislação, de “genocídio sanitário”.
*Fernando de Carvalho Teixeira é jornalista especializado em Judiciário com 20 anos de experiência, com atuação na Gazeta Mercantil, Valor Econômico e Secretaria de Comunicação do Supremo Tribunal Federal. É pós-graduando em direito empresarial (FGV) e tem formação em ética corporativa (HEC Lausanne), compliance (Penn Law School), psicologia social (Wesleyan) e economia comportamental (Univ. of Toronto).
O texto acima expressa a visão de quem o assina, não necessariamente do Congresso em Foco. Se você quer publicar algo sobre o mesmo tema, mas com um diferente ponto de vista, envie sua sugestão de texto para redacao@congressoemfoco.com.br.
Deixe um comentário