Em um tempo em que adjetivos são capazes de arrastar cidadãos e cidadãs sem imunidade parlamentar às delegacias de polícia — acossados pela Lei de Segurança Nacional — sinto-me na obrigação de falar de substantivos.
Afinal, adjetivos exprimem opiniões. O que maltrata o país, porém, são os fatos, e o substantivo é a classe gramatical para tratar dessa matéria.
O primeiro substantivo que quero trazer a essa conversa leitores, é genocídio — extermínio deliberado, aniquilação de uma comunidade, grupo étnico ou religioso, cultura ou civilização. E nem é preciso dicionário para compreender: basta olhar a nossa volta, ver as manchetes que sangram quase 300 mil mortos e a inação, sabotagem e indiferença do governo Bolsonaro.
O segundo substantivo é trapaça. Porque só pode ser esta a designação a ser dada a uma Proposta de Emenda à Constituição apresentada com o pretexto de assegurar uma renda mínima aos flagelados pelo paradeiro econômico da pandemia, mas que apenas aprofunda o arrocho e a crise.
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Fantasiado de “PEC Emergencial”, o texto da PEC 186 é, na verdade, a expressão da ideia fixa em cortes, privatização e arrocho que domina a cabeça de Paulo Guedes — basta lembrar que, há pouco mais de um ano, quando o então ministro da Saúde Luiz Henrique Mandetta se reuniu com deputados e senadores para informar sobre o que nos esperava com a chegada do coronavírus, o ministro da Economia, também presente ao encontro, só conseguia falar da “necessidade de privatizar a Eletrobras” como “medida de combate à pandemia”.
Em troca de um auxílio de R$ 150, a PEC 186 (agora Emenda Constitucional 109) é mais uma tesourada na capacidade do Estado de atender à população.
Entre os alvos imediatos do texto aprovado estão os servidores públicos — inclusive os profissionais de saúde que se exaurem no atendimento às vítimas da pandemia.
Em troca de R$ 44 bilhões para retomar o pagamento do auxílio emergencial, o que se aprovou foi um endurecimento das regras fiscais absolutamente incompatível com uma economia que encolheu 4,1% no ano passado e um país que poucas vezes precisou tanto do Estado para sair do abismo.
Não bastava o teto de gastos, que vem estrangulando a capacidade estatal de fazer a economia respirar e estrangula os serviços públicos — cada vez mais necessários a uma população empobrecida, processo iniciado bem antes do coronavírus chegar ao Brasil.
A partir de agora, seremos esmagados por um “subteto do teto”, que ativará gatilhos quando a despesa obrigatória superar 95% da despesa sujeita ao teto. Traduzindo: mais cortes, congelamentos de servidores, encolhimento da capacidade de atender demandas básicas da população.
Graças à mobilização da sociedade organizada e de parlamentares comprometidos com a maioria, o estrago ficou menor do que pretendiam Bolsonaro, Paulo Guedes e seus apoiadores. Barramos, por exemplo, a proibição de vinculação de qualquer receita pública a fundos específicos.
Mas isso não significa que os fundos estão a salvo da sanha fiscalista de Bolsonaro e Guedes. Na última terça-feira (16), o Partido dos Trabalhadores e a Rede ingressaram com ação para que o Supremo Tribunal Federal considere inconstitucional e suspenda imediatamente os efeitos de um trecho da PEC 186 relacionado ao uso de fundos públicos para pagamento da dívida pública.
Os partidos querem impedir que os recursos desses fundos — cerca de R$ 61,6 bilhões deixem de ser aplicados em programas sociais e sirvam, em vez disso, para o pagamento da dívida pública.
Esse risco, ressalte-se, foi resultado de uma jogada da Mesa da Câmara, que, por conta própria, alterou a redação do que foi aprovado pelo Plenário daquela Casa.
Com os servidores e servidoras a PEC 186 foi especialmente cruel. É verdade que conseguimos derrubar a possibilidade de redução de jornada e de salário de 25% — mas essa ameaça ainda paira, inscrita na PEC da Reforma Administrativa, que ainda será votada.
Mas já estão valendo os gatilhos para congelamento geral de salários, a impossibilidade de novos concursos públicos, de alteração de estrutura e de criação de novas despesas. Estudos apontam que o disparo desses gatilhos — quando a despesa atingir 95% da receita — deva ocorrer em 2024 ou 2025, na esfera federal.
No contexto atual do desmanche político do atual governo e da crise sanitária, 2024 pode parecer um futuro distante — que país seremos daqui a três anos? Mas convém lembrar que também em 2021 os servidores estão submetidos ao congelamento salarial imposto pela Lei Complementar 173, de maio de 2020.
No caso de estados e municípios, a tesourada é mais imediata. Meu Rio Grande do Norte, além do Rio Grande do Sul e Minas Gerais já estão com as despesas correntes em patamares superiores a 95% da receita. Nesses estados, portanto, os gatilhos já poderiam ser impostos. E, ainda que a EC 109 “faculte” aos chefes dos executivos estaduais a aplicação dos gatilhos, o texto aprovado determina que a União deixe de prestar garantias a esses estados.
Sim, era para ser a PEC do auxílio emergencial, mas— mais uma vez — o governo vendeu gato por lebre à sociedade. O nome disso é trapaça e este é o substantivo da vez.
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