É impossível uma democracia forte sem a educação para a prática da própria democracia. No entanto, e curiosamente, inexiste neste momento qualquer disciplina, seja nos currículos do ensino básico, do médio ou do superior que ofereça conteúdos para o conhecimento do sistema democrático, sua proteção e seu funcionamento. É como se fosse possível um trânsito seguro sem o conhecimento das leis do trânsito. Ou um planeta saudável sem educação ambiental.
Para que não haja risco à vida das pessoas, das plantas e dos animais, é preciso saber se portar tanto para dirigir um automóvel quanto para cuidar do lixo, por exemplo. Em relação à democracia, a “planta frágil” na definição de Octavio Mangabeira, e cujo sucesso e preservação depende essencialmente da educação dos cidadãos, inexiste neste momento qualquer esforço neste sentido. Há disciplinas que ensinam a contar, a escrever, a conhecer leis da física e da química, a geografia e a história do país e do mundo. Mas não uma disciplina voltada objetivamente à educação para a democracia, sem a qual a própria palavra educação não tem o menor sentido.
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OSPB, civismo e doutrinação
Lá no final dos anos 60, em plena ditadura militar, foi criada uma disciplina chamada Organização Social e Política do Brasil – OSPB, obrigatória no currículo escolar a partir de 1969, juntamente com a disciplina de Educação Moral e Cívica (EMC). As duas substituíram Filosofia e Sociologia. A intenção era exaltar o nacionalismo, o civismo e a exaltação do regime militar, sem qualquer intenção de promover a reflexão e a análise. Ou seja: era doutrinação e não educação. Entre os conteúdos, constava a “importância” da decretação do Ato Institucional nº 5, o AI-5, a legislação mais dura do regime, que abriu caminho para a censura, a tortura, as perseguições e as execuções de opositores do regime. As três matérias viriam a ser condenadas pelos Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN), estabelecidos na Lei de Diretrizes e Bases da Educação (LDB) de 1996, por estarem impregnadas de um “caráter negativo de doutrinação”. OSPB já havia sido revogada em 1993, no Governo Itamar Franco, que a considerou desnecessária. Durante a ditadura, muitos professores nacionalistas e opositores do regime de força, aproveitavam as aulas de OSPB para introduzir conteúdos de contestação à situação de opressão e supressão das liberdades democráticas. Por isso mesmo muitos terminaram perseguidos, presos e exilados.
O problema é que, de lá pra cá, nenhuma outra disciplina destinada diretamente à educação para a democracia foi criada. Somente nos períodos eleitorais ouve-se falar da importância do sistema democrático, do poder do voto, da necessidade de se defender as liberdades democráticas e o fortalecimento dos poderes do estado. O resultado é uma população que, na sua maioria, não sabe como funciona o estado nem tem a menor noção do que representa a perda dos valores democráticos, ameaçados por líderes populistas de ocasião que se valem da própria democracia para dilapidá-la. É o que está acontecendo neste momento no Brasil de Bolsonaro, fenômeno conhecido como “corrosão da democracia por dentro”. Para Steven Levistsky, autor do best-seller “Como as democracias morrem”, a par de inexistir uma salvaguarda perfeita para a democracia, por se tratar de um sistema aberto, no qual todos os pontos de vista precisam ser tolerados e as eleições devem ser absolutamente livres, demagogos e populistas podem surgir e por em risco a própria instituição democrática. “A democracia – afirma ele – convive permanentemente com ameaças”.
Bolsonaro tentará criar crise e reverter resultado desfavorável
Mas se os cidadãos tiverem uma formação voltada para o conhecimento – e, portanto, para a defesa – da democracia como instituição, ela tem muito mais chances de ser protegida e fortalecida. Levitsky adverte que “muitos países não valorizam a democracia e não reagem, de um modo sério, até perderem a própria democracia”. E somente depois de perderem é que a valorizam. Observador da cena política brasileira, Levitsky adverte que “há risco de Bolsonaro criar uma crise, a fim de reverter o resultado das eleições. Se será bem sucedido ou não, quem sabe? Mas ele tentará”.
Se o país conseguir atravessar a tempestade democrática em curso, vai precisar com urgência implantar mecanismos capazes de garantir uma boa educação para a democracia, capaz de fazer frente aos aventureiros que sempre tentarão exterminá-la, como está ocorrendo agora. Vale a pena lembrar uma frase do ex-presidente norte-americano Franklin Delano Roosevelt, para quem “a democracia não pode ter sucesso a menos que aqueles que expressam sua escolha estejam preparados para escolher sabiamente. A verdadeira salvaguarda da democracia é a educação”.
PublicidadeFoi muito por falta dessa educação para a democracia que propiciou a eleição de uma figura nefasta à própria democracia como Bolsonaro e, portanto, nos levou à beira do precipício em que nos encontramos.
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