Entenda o que há por trás da demonização da religião que construiu a primeira república negra do mundo
Foi numa cerimônia Vodu que a Revolução Haitiana se iniciou e foi a partir dos conhecimentos contidos nele que ela foi exitosa. Mas, a única história que tivemos acesso durante todos esses anos foi uma narrativa fantasmagórica e reducionista dos bonequinhos espetados por agulhas ou monstros zumbis.
Diferente do que se costuma pensar, o Vodu, sobretudo no contexto da Revolução Haitiana, na verdade, foi um pacto de liberdade tão forte que levou toda uma nação escravizada a vencer potências militares brancas europeias, não ontem, mas há 200 anos. Ou seja, existe um momento na história da escravização negra nas Américas no qual os escravizados derrotaram os escravizadores. Houve um momento em que os pretos venceram os brancos de uma forma tão, mas tão engenhosa e incrível, que chega a ser um absurdo a maioria das pessoas ainda não saber disso.
E, para ser bem sincera, eu mesma, que sou estudante de História, não conhecia a riqueza escondida na história do Vodu e da Revolução Haitiana. Só passei a conhecer por iniciativa da Professora Denise Demétrio, em suas aulas de História da América Colonial, na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), onde apresentou para turma a importância de serem investigadas outras narrativas dentro da História das Américas.
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A iniciativa da professora Denise Demétrio é algo ainda raro no Brasil, em todos os estágios da educação no país, onde a história dos negros ao redor do mundo quase nunca é abordada. Com isso, ficamos sem referências de resistências e conquistas realizadas por nossos ancestrais que, dentro das narrativas brancas tradicionais, não passam de pessoas incompetentes, submissas e sofridas.
Uma narrativa dessa, cuidadosamente construída ao longo dos séculos e reforçada de diferentes formas e meios, não combina nada com a verdadeira história do Vodu e da Revolução Haitiana, mas combina muito com a campanha de demonização feita a respeito do Vodu. No Vodu não há a determinação de que os inimigos devam ser perdoados e é justamente isso que assusta os supremacistas brancos.
PublicidadeMediante a brutal violência a qual os negros foram submetidos, nas plantações de cana de açúcar no Caribe, a única opção possível era a de lutar pela liberdade. Perdão não era uma opção. Não seria sequer viável, já que existe uma lista de práticas brutais implementadas pelos europeus contra esses africanos escravizados, como por exemplo enterrá-los vivos somente com as cabeças para fora, banhadas de mel, onde morriam tendo suas cabeças devoradas por insetos. Ou abrir a barriga de mulheres africanas escravizadas que estavam grávidas, para que pudessem apostar quem morreria primeiro, a mãe ou o feto. Esses são apenas dois exemplos de uma lista enorme de atrocidades.
Os brancos eram cruéis e consideravam as pessoas pretas não somente inferiores, mas sem humanidade. O Vodu forneceu aos revolucionários haitianos coesão identitária, estabilidade emocional e motivação para lutarem por sua liberdade e, justamente por isso, causa tanto medo a branquitude até hoje, pois tem uma capacidade absurda de destruir todo o projeto de desumanização dos povos africanos e suas diásporas.
Então, quando a branquitude trata de demonizar o Vodu, ela está demonizando a plena liberdade negra. Está demonstrando todo o medo que possui, pois se aquelas pessoas foram capazes de fazer tudo aquilo sob o pesado jugo da escravização, imagina o que fariam sendo plenamente livres? E isso não é pura especulação.
Napoleão Bonaparte expressa esse medo em seu diário. Medo que essa gente preta africana se desse conta de que são fortes e que a Civilização Ocidental roubou tudo o que lhes pertence. O medo foi tanto que mandou os mais cruéis militares, acreditando que derrotariam facilmente os Haitianos, coisa que não aconteceu.
A verdade é que nenhuma pessoa permitiria ser facilmente escravizada e ter sua humanidade negada. A escravização não foi um processo natural. Para que isso fosse possível diversas estratégias foram utilizadas, como separar as famílias, retirar o nome do indivíduo que seria escravizado e impor-lhe um nome europeu, impor-lhe o idioma, a cultura e a religião branca europeia. Vulnerabilizar e violar o corpo e a mente do escravizado, era disso que essas estratégias davam conta.
Ocorre que o narcisismo branco não contava que não se destrói milênios de sabedoria com amadorismo cruel, muito pelo contrário, inclusive. E que o sistema espiritual africano era, e é, muito mais complexo do que eles poderiam supor.
Enquanto a branquitude compreende a religião e espiritualidade de modo separado dos demais aspectos da vida, para os povos africanos e suas diásporas se trata de algo muito além de um culto organizado, como podemos observar até os dias atuais nas diversas religiões de matriz africana, incluindo o Vodu. É um modo de vida, uma ciência sagrada.
Nas concepções africanas de religião não existe necessariamente um “religare”, pois já existe uma convivência harmônica com o sagrado em sua cosmovisão. É algo que está presente no modo de viver, de se relacionar com seus semelhantes e com o ecossistema. E foram justamente esses conhecimentos de mundo, acumulados por tempos imemoriais, que deram aos haitianos tudo o que precisavam para lutar e vencer anos de guerra contra os mais brutais e bem equipados exércitos da época.
O Vodu lhes permitiram criar uma unidade cultural, espiritual, linguística e, como se já não fosse muito, lhes fornecia conhecimentos sobre a natureza, aspecto fundamental para o sucesso que foi a Revolução Haitiana. O conhecimento das plantas para que fabricassem tintas, substâncias tóxicas e remédios. Todo o insumo que a própria natureza fornecia também foi fundamental. Uma pedra era uma arma. Um galho de árvore era uma arma. Um terreno de difícil acesso era uma arma. Seus corpos também eram armas de luta pela liberdade plena.
Para começar, a realização da cerimônia, que consistia num ritual Vodu, onde a Revolução seria organizada, já foi um feito extraordinário. Imaginem o que deve ser estar num local sob constante vigilância e repressão. Em qual local seria possível se reunir de forma segura para organizar uma revolução?!
Para os líderes voduístas revolucionários, dentre eles os mais conhecidos Boukman e Cécilie Fatiman, esse lugar seguro foi um pantano de crocodilos, algo que me impressiona, pela valentia e astúcia, mas também me faz pensar em como aquele povo devia estar completamente farto de tanta violência, a ponto de considerar estar perto de crocodilos algo mais seguro do que de humanos brancos.
Obviamente, eles escolheram aquele lugar para a cerimônia, pois sabiam que seus algozes jamais se atreveriam a chegar perto de lá, já que não tinham tanto conhecimento do território e habilidade para lidar com a natureza quanto aqueles que escravizavam.
Até hoje, o principal objetivo da demonização do Vodu, religião que construiu a primeira república negra do mundo, e demais sistemas religiosos de matriz africana, é distanciar o povo Haitiano, e as diásporas africanas ao redor do mundo, de elementos fundamentais para a sua completa libertação e submissão à exploração branca.
Dizem sempre que os vencedores das guerras são os que contam a história, certo? Mas, observando a narrativa predominante a respeito do Haiti e do Vodu, podemos concluir que, o saldo final da Revolução Haitiana não foi completamente vitorioso.
A vitória Haitiana poderia ter sido, e até certo ponto foi mesmo, um prenúncio do que os escravizados das Américas poderiam fazer em toda a extensão do território. Mas, um aprendizado muito importante que o processo revolucionário haitiano nos deixa é que não basta vencer militarmente. Existe uma outra guerra tão importante quanto a militar e essa, de fato, a Revolução não alcançou, que foi a guerra cultural.
O primeiro erro de parte dos revolucionários foi buscar reconhecimento por parte das potências europeias implementando governos e instituições semelhantes às suas, descuidando dos aspectos culturais. Os europeus, por outro lado, apesar de terem perdido militarmente, rapidamente trataram de reenquadrar sua derrota e intensificar uma narrativa de demonização do Vodu. O medo de que o fenômeno da Revolução Haitiana se espalhasse nas demais colônias era grande e não perderam tempo em contra atacar tudo o que os derrotaram no Haiti.
Uma das formas utilizadas para espalhar desinformação a respeito do Vodu foi o Cinema.
Um exemplo disso é o filme White Zombie (1932), do diretor Victor Hugo Halperin, que conta a história de um milionário que se utiliza do Vodu para transformar uma jovem, pela qual era apaixonado, em zumbi, já que o seu amor não era correspondido.Existem vários desses filmes de terror em que o Vodu é reduzido a mera feitiçaria e, essa prática de transformar pessoas em zumbis deriva de uma história bastante específica, onde alguns praticantes do Vodu e conhecedores das substâncias tóxicas que poderiam ser extraídas de plantas, colocavam essas substâncias em algo que uma determinada pessoa fosse ingerir e essa pessoa perdia quase todos os sinais vitais, sendo dada como morta.
O corpo era enterrado pela família, mas, era desenterrado por quem havia dado a substância nociva e outra substância era administrada fazendo aquela pessoa voltar a vida, no entanto, a pessoa ficava num estado tal que obedecia facilmente as ordens de quem a trouxe a vida novamente. Alguns dizem que essa prática visava punir alguém que tivesse agido mal com a comunidade ou suas famílias, ou ainda que pessoas mal intencionadas utilizavam essa técnica para recrutar “zumbis” para plantações no interior do Haiti.
Outras obras contribuíram ainda mais com a demonização do Vodu, como os desenhos infantis Pica-pau, com o personagem Zé Jacaré, que é um mestre Vodu e mora, coincidentemente, num pântano, e o filme A Princesa e o Sapo, com o personagem Dr Facilier, que é um bruxo do mal que utiliza a magia para tentar dominar a cidade de Nova Orleans.
Ao longo dos anos foi fortalecida uma narrativa a respeito dos problemas socioeconômicos que assolam o Haiti, os desastres naturais que ocorrem na região e sobre a suposta incompetência negra de se autogovernar. Com o avanço das religiões protestantes nos meios de comunicação, essas ideias ganharam ainda mais alcance. Essa narrativa coloca toda a responsabilidade dos problemas enfrentados pelo Haiti à prática do Vodu e não na ação do colonialismo, do neocolonialismo e imperialismo internacional sobre o país que, aliados às elites locais, causam um grande caos político e econômico ao país.
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