Enquanto a Assembleia Nacional Constituinte, entre 1985 e 1988 aprovava a nossa atual constituição federal, inúmeros “empates” no meio da floresta amazônica, no interior do Acre, eram liderados por Wilson Pinheiro e Chico Mendes, como estratégia de resistência cívica e reação pacífica, porém firme, do movimento sindical dos seringueiros, para conter o avanço de tratores e correntões de pecuaristas paulistas sobre as florestas amazônicas.
Nascia ali uma aliança histórica que forjou pela luta por direitos o movimento socioambiental brasileiro, ao mesmo tempo em que foi legitimada a sua base jurídica, com a promulgação da CF de 1988 e seus artigos 186 (função social da propriedade), 225 (direito ao meio ambiente) e 231 (direitos indígenas), dentre outros.
Um terço de século depois estamos assistindo nas últimas semanas um empate diferente, porém com propósitos semelhantes. Não mais de seringueiros, mas de ministros togados do STF em defesa da floresta amazônica e da sustentação da vida no Planeta. É desse “empate” que trato nas linhas vindouras.
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Desde 28 de março passado o STF pautou e vem examinando seis ações judiciais de controle de constitucionalidade por ação, omissão e descumprimento de preceito fundamental (ADI, ADO e ADPFs) relacionados a pauta climática e de direito socioambiental.
Estão em discussão o descontrole total e o estímulo governamental aos desmatamentos na Amazônia, a desestruturação da política ambiental pela inexecução de recursos orçamentários e desconstituição de base infralegal, a falta de participação da sociedade civil em instâncias políticas decisórias, a paralisação na aplicação de fundos financeiros para a agenda de clima e meio ambiente, a extinção de planos e instrumentos de controle e monitoramento ambiental e a fragilização do licenciamento ambiental, dentre outros temas.
São muitas questões, conceitos e instrumentos estruturantes da política e do direito climático e socioambiental brasileiro que estão sendo “passados a limpo” pela Suprema Corte nacional, neste conjunto de ações que marcamos nas redes sociais com a hashtag #PautaVerdenoSTF.
PublicidadeTalvez esse seja o maior legado deste atual governo para a estrutura jurídica ambiental brasileira, depois de 33 anos de vigência da Constituição Federal: decisões robustas da Suprema Corte contrarias aos retrocessos em matéria de Direito Ambiental.
Se no Estado Democrático de Direito deve imperar a independência com a harmonia entre os poderes, o que a política corrompe pela força, a Justiça deve recompor. Esse é o movimento em curso no STF. Um grande Empate Socioambiental judicial com impactos diretos nos debates legislativos em curso no Congresso Nacional. Senão vejamos.
O executivo federal, com base na política do “parecer-caneta”, desde 1º de janeiro de 2019, como já escrevi muito nesta Coluna, vem desestruturando toda base institucional, programática e normativa do Direito Ambiental e Climático brasileiro.
O legislativo federal, depois de um realinhamento orçamentário de caráter republicano questionável entre presidência da Câmara e da República, vem operando o denominado Pacote da Destruição, já tendo aprovado, em menos de um ano, os PLs da Grilagem (2633/20), do (des)Licenciamento Ambiental (3729/04) e do Veneno (6299/02). Ainda este ano a Câmara está se esforçando para aprovar o PL do Garimpo em Terras indígenas (191/19) dentre outros tão destrutivo quanto.
É a pauta da vanguarda do atraso, presidida pela trinca Jair Bolsonaro, Arthur Lira e Sérgio Souza (presidente da Frente Parlamentar Agropecuária).
Se o Executivo “tratora” o direito de todos ao meio ambiente equilibrado e o legislativo “incinera” a base legal de sua proteção, num legítimo e efetivo Estado Democrático de Direito que se preze, cabe ao Poder Judiciário reequilibrar o estado de coisas inconstitucional que reina nos dois outros poderes.
É o que se vê acontecendo neste exato momento.
Das seis ações em pauta já há duas decisões e um voto lido. Abaixo examino a primeira ação a ADPF 760 que tive a oportunidade de atuar no Plenário do STF agora no final de março em nome da Rede Sustentabilidade e do PDT e cujo julgamento já começou.
A ADPF 760 trata de ações e omissões do atual governo que extinguiu o Plano de Prevenção e Controle dos Desmatamentos na Amazônia (PPCDAm) e cuja consequencia tem sido os três últimos anos de aumento expressivo de desmatamento superior a 75% em relação à média dos dez anos anteriores a 2019.
O enfático voto da Ministra Carmen Lúcia constata que há um “estado inconstitucional de coisas” resultante do que ela também denominou de “cupinização” silenciosa das estruturas (institucionais e normativas) oficiais federais de meio ambiente. Afirma que o Estado não pode retroceder em relação aos avanços obtidos no monitoramento, controle e responsabilização ambiental alcançado nas gestões anteriores em face da eficaz implementação por parte do governo federal do Plano de Prevenção e Controle dos desmatamentos. Também examino de forma objetiva o impacto da decisão na ADI 6528 proposta pelo Partido Socialista Brasileiro (PSB) questionando a “liberalidade” da Lei de Liberdade Econômica que criou a figura da Licença sem participação humana e por decurso de prazo.
Impactos da ADPF 760 no debate legislativo:
– PL 2633 (Regularização Fundiária): Se o poder executivo e o legislativo não podem retroceder em matéria de direito ambiental (princípio constitucional da proibição de retrocesso em matéria de direitos fundamentais) e devem garantir efetiva proteção e responsabilização em face dos crimes ambientais também não podem (executivo e legislativo) oferecer anistia oficial a quem desmatou ilegalmente e ocupou áreas de florestas públicas de forma ilegítima. Portanto, o PL 2633 (PL da Grilagem) aprovado pela Câmara, e principalmente o PL 510/21 que deve ser priorizado pelo Senado, ao “prorrogarem” o marco temporal para legitimar e consolidar ocupações e desmatamento ilegais em áreas públicas, com a titulação das áreas, a preço de banana e sem vistoria presencial, como proposto pelo governo e pela bancada ruralista no âmbito do PL referido é flagrantemente inconstitucional, nos termos do voto em questão na ADPF 760.
– PL 3719 (Licenciamento Ambiental): Se o governo (aqui leia-se federal e estadual) tem o dever, nos termos do voto da relatora Carmen Lúcia na ADPF 760, de implementar mecanismos efetivos de monitoramento, controle e responsabilização pelo desmatamento ilegal , tendo como o mínimo aceitável juridicamente o que já fez ao implementar o PPCDAm, entre 2004 e 2013, então conclui-se que será inconstitucional qualquer ato administrativo público, inclusive licenciamento ambiental (emitido pelo poder público) que ignore ou se omita em considerar e mitigar os impactos no estímulo ao crescimento da grilagem de terras e florestas públicas e dos desmatamentos ilegais nas regiões de influência direta e indireta das obras sob licenciamento ambiental.
Impacto da decisão na ADI 6528
– PL 2159 de Licenciamento Ambiental: A ADI 6514 questiona dispositivo da Lei de liberdade econômica fruto da conversão da MP 881 de 2019. O art. XX define que pode ser emitido licenciamento ambiental automático, tácito, sem qualquer vistoria ou participação de técnicos ambientais do poder público, ou mesmo por ato administrativo apenas por decurso de prazo. A decisão pela inconstitucionalidade desse dispositivo foi tomada por 10 X 0 em face da obrigação do poder público adotar medidas preventivas e protetivas do meio ambiente no caso de obras com impacto ambiental médio e grande. Ora essa é uma das principais demandas do governo e de setores privados. Querem implementar como regra no País o licenciamento ambiental automático e virtual sem vistorias e sem emissão de ato prévio pelo órgão ambiental. Portanto um dos elementos centrais do PL 2159 de 2019 em tramitação no Senado está prejudicado pela decisão do STF.
Registro ainda outra decisão importante também com impactos no debate legislativo que é a ADPF 651 que questionou três decretos do Presidente Bolsonaro que enfraqueceram instâncias de participação da sociedade civil nas políticas ambientais. Os decretos em questão foram emitidos em 2020. O primeiro retira a obrigatoriedade da indicação de representantes da sociedade civil no conselho deliberativo do Fundo Nacional do Meio Ambiente (FNMA). O segundo, extingue o Comitê Organizador do Fundo Amazônia; e o terceiro retira os governadores do Conselho Nacional da Amazônia Legal (CNAL). A decisão foi uma derrota de 10 x 1 aos decretos de Bolsonaro indicam que há um consenso absoluto contrário à atual política desconstitutiva dos instrumentos de gestão ambiental.
Como dissemos esse Empate Socioambiental certamente terá impacto nos debates legislativos socioambientais no Congresso Nacional.
Caso o Senado não entenda o recado e não estabeleça um freio de arrumação ao Pacote da Destruição, mais uma vez caberá ao Judiciário equilibrar a balança!
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