Celeste Leite dos Santos*
Em 15 de setembro de 2021 foi sancionada a Lei Estadual n. 17.406 que obriga os condomínios residenciais e comerciais a comunicar os órgãos de segurança pública quando houver em suas unidades condominiais ou nas áreas comuns a ocorrência ou indícios de episódios de violência doméstica e familiar contra mulheres, crianças, adolescentes ou idosos. De acordo com o novel diploma legal, a comunicação nos casos de infrações em andamento, deverão ser realizadas por telefone ou aplicativo e, por escrito no prazo de 24 horas após a ciência do fato contendo informações que permitam identificar a possível vítima e o possível agressor.
Para efetivação do comando legal são previstas campanhas educativas no interior dos condomínios nas áreas de uso comum a fim de que todos aqueles que tiverem, por qualquer meio, conhecimento de atos de violência ou indícios desse comuniquem o síndico ou administrador para a adoção das providências mencionadas supra.
Em que pese o texto legal utilizar a expressão “obrigação”, trata-se de verdadeiro dever, eis que alude a situação jurídica pessoal a qual parcela da sociedade detém algo de outrem, devendo ser considerados os interesses coletivos e gerais no combate a violência. Trata-se de forma de ingerência penal na vida dos cidadãos, na qual o Estado assume o poder diretivo de induzir mudanças positivas no comportamento da sociedade, construindo novas perspectivas de acolhimento às vítimas em situação de vulnerabilidade, quer em razão de situação de dominação de um parceiro sobre o outro (no caso de violência contra a mulher), ou por critério etário (crianças adolescentes, e idosos). A esse respeito, já ponderei que (2020, p. 27):
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“O papel preventivo do direito penal deve ser perquirido, não apenas na perspectiva da prevenção à delinquência, mas também da prevenção a vitimização. Os fenômenos de vitimização e delinquência se inter-relacionam, permitindo estratégia conjunta de redução da escalada da violência em nossa sociedade”.
Ao lado do controle social formal do Estado por meio dos órgãos responsáveis pela segurança pública, regulamenta-se o dever social de controle social informal por parcela representativa da sociedade, os condomínios edilícios comerciais e residenciais, atendendo-se ao comando constitucional previsto no art. 144 da Constituição Federal:
PublicidadeArt. 144. A segurança pública, dever do Estado, direito e responsabilidade de todos, é exercida para a preservação da ordem pública e da incolumidade das pessoas e do patrimônio, através dos seguintes órgãos: (…)
A pandemia causada pelo COVID-19 tornou evidente a necessidade do abandono a fórmulas patriarcais opressoras de mulheres e grupos vulneráveis, para apropriação do cuidado mútuo. Mais do que fomentar o incremento de prestações estatais positivas, urge a positivação de deveres relacionais, fomentando-se o progresso civilizatório por meio de verdadeira Sociedade do Bem Estar Social. Para tanto, urge o dever de legislar na tutela de bens relacionais sem distinção de sexo, raça, opção sexual, idade, religião e origem. A violência advinda da injustiça social e do desequilíbrio de direitos e garantias no processo penal, ferramenta de origem iluminista, não se sustenta em um Estado Social e Democrático de Direito, devendo ser combatida a tutela deficiente dos direitos das vítimas por meio da aprovação do Projeto de Lei n. 3890-2020.
Mutatis mutandis, ainda que vetado o dispositivo que previa a imposição de multa ao síndico ou administrador faltoso, por entender-se que compete a União legislar sobre processo, temos que o próprio condomínio poderá prever ações positivas, como a capacitação de funcionários e condôminos na identificação de situações de violência física, psíquica, moral e patrimonial, bem como penalidades ao agressor, síndico ou administrador que agirem em desconformidade com a tutela da segurança pública de todos os cidadãos.
O agressor reiterado pode ter sua conduta subsumida ao art. 1337, parágrafo único do Código Civil que prevê desde a imposição de multa ao condômino antissocial, até a propositura de ação de expulsão. A esse respeito, o Enunciado 508 do CJF dispõe:
Enunciado 508-CJF: Verificando-se que a sanção pecuniária mostrou-se ineficaz, a garantia fundamental da função social da propriedade (arts. 5º, XXIII, da CRFB e 1.228, § 1º, do CC) e a vedação ao abuso do direito (arts. 187 e 1.228, § 2º, do CC) justificam a exclusão do condômino antissocial, desde que a ulterior assembleia prevista na parte final do parágrafo único do art. 1.337 do Código Civil delibere a propositura de ação judicial com esse fim, asseguradas todas as garantias inerentes ao devido processo legal.
De outra parte, os estatutos dos condomínios podem regulamentar sanções para o descumprimento do dever do síndico eleito ou contratado e o administrador tornarem efetivas as disposições previstas nessa lei, como por exemplo, a destituição ou demissão do síndico, previsão de revogação do contrato de administração, dentre outras providências.
Questão interessante que ganha luzes com a discussão provocada pela lei ao regulamentar os deveres relacionais, é o dever de todos os condôminos zelarem uns pelos outros, consoante previsto no art. 135 do Código Penal:
Art. 135 – Deixar de prestar assistência, quando possível fazê-lo sem risco pessoal, à criança abandonada ou extraviada, ou à pessoa inválida ou ferida, ao desamparo ou em grave e iminente perigo; ou não pedir, nesses casos, o socorro da autoridade pública: Pena – detenção, de um a seis meses, ou multa.
Parágrafo único – A pena é aumentada de metade, se da omissão resulta lesão corporal de natureza grave, e triplicada, se resulta a morte.
A situação de grave e iminente perigo advindos da violência doméstica tornam evidente que o não fazer, traz consequências jurídicas. Não podemos mais justificar os índices alarmantes de violência contra a mulher, crianças, adolescentes e idosos na terceirização da responsabilidade – o dever de solidariedade advém da Carta Magna e leis ordinárias. O mérito legislativo consiste justamente em lançar luzes sobre a relatividade do direito de posse e propriedade em razão de sua função social, bem como que a intimidade e vida privada não podem ser exercidas em prejuízo dos membros do núcleo familiar e, jamais devem prevalecer frente a ocorrência de crime.
Em síntese, longe de se tratar de lei sem eficácia jurídica ante o veto a imposição de multa ao síndico e administrador faltosos, há o convite a reflexão sobre os deveres de todos os condôminos e funcionários do condomínio no cuidado recíproco. Para tanto, se faz necessária a adoção de procedimentos internos de cuidado e respeito ao próximo para que seja alcançado o objetivo constitucional de uma sociedade livre, justa e solidária.
*Celeste Leite dos Santos é promotora de Justiça, gestora do projeto Avarc (Acolhimento de Vítimas, Análise e Resolução de Conflitos), doutora pela USP, mestre pela PUC-SP e membro do Movimento do Ministério Público Democrático
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