O governo Bolsonaro testou a democracia brasileira intensamente, deixando muitas lições por serem aprendidas e atitudes a serem eventualmente tomadas pelos democratas. Os próximos anos serão importantes para o fortalecimento da democracia, o que passa por uma postura mais ativa e vigilante, diante das ameaças de ruptura.
A década de 2010 assistiu mundo afora ao avanço de valores, atitudes e comportamentos antidemocráticos. Países de democracia mais antiga e outros menos consolidados conheceram lideranças populistas de extrema-direita que passaram a ameaçar o sistema político a partir de dentro. Ao contrário das rupturas democráticas de meio século atrás, em que se fechavam de um só golpe instituições democráticas como assembleias e cortes judiciais e suspendiam-se eleições e direitos civis, hoje o processo é insidioso, corroendo por dentro as instituições democráticas – daí que se fale na ascensão de “valores, atitudes e comportamentos autoritários”.
Há já uma extensa literatura sobre o assunto que ilumina suas causas, e o ponto que precisamos considerar com toda seriedade é que não se trata de uma contingência, de uma excepcionalidade, mas sim de um processo enraizado profundamente na sociedade e que por isso permanecerá à espreita enquanto muito não for modificado. Não nos parece novidade, assim, que o fortalecimento institucional deva ser prioritário. Testadas ao extremo nos tempos que correm, instituições democráticas precisam ser reestabelecidas em muitos pontos e recriadas em outros.
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Hoje, contudo, pretendemos chamar a atenção para apenas um ponto, o instituto e o uso do impeachment.
Bolsonaro acumulou um recorde, com mais de uma centena de pedidos de impeachment, o primeiro deles datado de março de 2019. Aproximamo-nos do fim do mandato sem que o presidente da Câmara dos Deputados se manifestasse sobre o assunto. Algumas vezes o Supremo Tribunal Federal foi provocado a se manifestar no âmbito de ações diretas de inconstitucionalidade, contudo não acatou nenhum pedido, expressando a compreensão de que o assunto seria da esfera do Legislativo.
Tanto Rodrigo Maia quanto Arthur Lira ampararam-se no princípio da oportunidade e conveniência para não analisar qualquer um dos pedidos de impeachment que chegaram à sua mesa: seria decisão discricionária. Mas a “Lei do Impeachment” – Lei nº 1059/1950, define que “recebida a denúncia, será lida no expediente da sessão seguinte e despachada a uma comissão especial eleita”. O dispositivo legal foi contemplado no Regimento Interno da Câmara dos Deputados, no seu art. 218, que, no §2º, define que cabe ao presidente da Câmara dos Deputados receber a denúncia. Parece-nos não haver dúvida que esse recebimento deveria ser interpretado como automático.
É nessa brecha, contudo, que se imiscuiu o tal juízo de oportunidade e conveniência. O presidente deixa os pedidos sem serem recebidos, o que impede que tenham qualquer tipo de tratamento – se um pedido é formalmente não aceito pelo presidente, ao menos o Plenário poderia ser manifestar, o que não é o caso diante da inércia em voga. Mais uma vez o ‘jeitinho’ nacional mostra sua face, deixando clara a precariedade de nossas instituições. Já houve no passado, na Câmara, sessão em que o Presidente ordenou que fosse atrasado o relógio para que não se perdesse oficialmente um prazo. Já houve, na Câmara, a prática de não “ler” medidas provisórias, para evitar contagem de prazos. Existe no Congresso uma PEC aprovada pelas duas Casas, conforme todos os procedimentos constitucionais, mas que simplesmente não é promulgada. Essa é a face do ‘jeitinho’, inserida no centro decisório mais elevado do País.
Esse juízo de oportunidade e conveniência, na forma como é atualmente exercido pelo presidente da Câmara dos Deputados, violenta a democracia e princípios fundamentais da Constituição brasileira. Deixados os pedidos no limbo (não se recebe, mas também não se manda para o arquivo), mantém-se esses como instrumento de barganha não legítimo de um poder (Legislativo) sobre o outro (Executivo), o que viola o princípio constitucional da harmonia entre os poderes.
E o cidadão, ou os cidadãos que fizeram o pedido, ficam também no limbo, amputados em seu direito de cidadania. Faz parte do art. 5º da Constituição Federal o direito ao devido processo legal e o direito à razoável duração do processo. Ambos esses direitos fundamentais são violados pela prática de não dar andamento aos processos de impeachment. Vale ressaltar que, diferentemente dos Estados Unidos, onde o presidente pode ser submetido ao impeachment após deixar o cargo (o que aconteceu recentemente com Donald Trump), no Brasil, conforme o art. 15 da Lei 1059/1950, a denúncia de impeachment só poderá ser recebida enquanto o denunciado não tiver, por qualquer motivo, deixado definitivamente o cargo. Ou seja, o prazo máximo para a apreciação inicial de um processo de impeachment (o seu recebimento ou não pela Presidência da Câmara dos Deputados) são os quatro anos do mandato presidencial. Não se trata de um prazo indefinido.
Levando-se em consideração o direito fundamental ao devido processo legal, não é razoável que esse prazo coincida com os quatro anos do mandato presidencial, situação em que não seria possível o andamento dos demais atos processuais. Sim, o impeachment é político e o julgamento de um impeachment é um processo político. Mas, repare-se bem, é um processo. E como qualquer processo no âmbito do marco constitucional nacional, deve ter um tempo razoável. Ademais, outro direito fundamental inscrito no art. 5º constitucional é o de que a lei não afastará da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça à direito. Na forma como é interpretada atualmente a Lei do Impeachment, ela justamente impede que os proponentes de mais de uma centena de pedidos tenham apreciada pelo Judiciário as lesões aos seus direitos ensejadoras de suas reclamações.
O fato de que nenhum pedido de impeachment de Bolsonaro tenha sido sequer recebido instaurou uma situação atípica no país. Por um lado, será muito difícil se justificar o andamento de um pedido de impeachment de presidentes no futuro. Até os impeachments de Collor e Dilma, vistos no retrovisor, parecem risíveis. Por outro, o instituto é importante no arcabouço democrático nacional e deveria ser resgatado, inclusive sob a luz de ser um direito fundamental. Afinal, o que cabe ao Parlamento é discutir e decidir conforme regem a Constituição e as leis, e não impedir uma discussão inscrita legitimamente na ordem legal.
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