De uns meses para cá, venho dedicando as minhas playlists musicais e a minha pesquisa do mestrado para o rap nacional. Estilo musical este que, associado a outras formas de manifestação artística, compõe a cultura Hip Hop. As primeiras manifestações que compõem esse movimento cultural remontam os espaços de segregação racial das grandes cidades norte-americanas da década de 1970. O rap, constituído por ritmo e poesia, foi influenciado não só pela cultura negra que se manifestava nesses espaços, como também por várias outras manifestações culturais que se espalharam pelo Atlântico nos movimentos da diáspora africana.
No Brasil, tal estilo musical também se estabelece, primeiramente, dentro das zonas periféricas das grandes cidades, desde 1980. Atualmente, o rap vem ganhando bastante visibilidade dentro da cena musical nacional. Por ser produzido (em sua maioria) nas comunidades e periferias, as rimas que o constituem, muitas vezes, narram questões que englobam esse contexto sociocultural: racismo, violência, exclusão social, marginalização do espaço urbano, entre outros aspectos que fazem parte da vida da população negra, favelada e periférica brasileira.
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Um dos maiores nomes do rap nacional hoje é, na minha percepção, o Emicida. Rapper oriundo da periferia de São Paulo que vem se tornando uma grande referência na música brasileira. Entre os seus últimos trabalhos, o que mais se destacou foi o projeto “AmarELO”, que vai muito além de um projeto musical: é um projeto artístico, visual e histórico.
O primeiro show desse álbum foi no final de 2019, no Theatro Municipal de São Paulo, local este que, ao longo da história, vem sendo palco de muitas apresentações de música clássica e frequentado majoritariamente por pessoas brancas das classes médias e alta. Emicida fez o contrário: colocou o rap em evidência dentro desse espaço, com vários artistas pretos e com uma plateia lotada de pessoas negras e representantes dos movimentos negros. Realizar a apresentação nesse teatro é algo simbólico: Apesar dessa construção ter sido erguida por mão-de-obra negra, pouquíssimos artistas negros tiveram a oportunidade de se apresentar ali e boa parte da população negra nunca teve a oportunidade de entrar naquele prédio. Ocupar aquele espaço, levando uma manifestação cultural que tem a sua base constituída nas periferias, é confrontar a lógica de dominação da branquitude que até hoje exclui a população negra da possibilidade de frequentar determinados locais.
Após esse primeiro show, a turnê foi interrompida por conta da pandemia, mas o Emicida lançou um documentário intitulado “Amarelo – É tudo pra ontem”, numa plataforma de streaming de vídeos. Esse documentário deixa claro que não podemos falar da história do Brasil apagando a presença da população negra, nem suas ancestralidades, heranças, manifestações culturais e religiosas, suas dores e seus processos de resistência. Nos mostra que o racismo é a estrutura fundante de muitos problemas sociais e que a nossa sociedade foi construída em cima de mecanismos de poder que nega, silencia e mata as pessoas pretas. Mecanismos estes que seguem sendo reproduzidos até hoje. “AmarElo” (tanto o documentário quanto o show), é uma exaltação à memória da cultura negra, colocando as pessoas pretas como protagonistas da história.
Com a volta da turnê, eu tive a oportunidade de assistir os últimos dois shows que ele fez no Rio de Janeiro, um numa casa de show e o outro em um festival de música. Uma das coisas que me impressionou foi a quantidade de pessoas que se sente representada pelas narrativas que as suas músicas propõem. Nas apresentações da casa de show, Emicida esgotou as vendas dos ingressos para três noites de apresentação em menos de 24 horas. Na apresentação do festival, todas as pessoas que estavam lá se voltaram para o palco, mesmo depois de assistir outros artistas naquele dia. O festival inteiro parou para ouvi-lo. Os dois shows estavam lotados de pessoas que cantavam junto com ele, numa só voz, “tudo o que nóiz tem é nóiz” e inúmeras outras músicas de seu repertório.
PublicidadeO show nos traz uma variedade de sentimentos contraditórios, que vão desde raiva em relação ao sistema social e político em que vivemos, até o amor mais puro que podemos nutrir por alguém ou por nós mesmos. Me fez refletir sobre quem eu sou, sobre o que eu quero e deixar para os meus e qual meu papel na sociedade enquanto mulher preta e historiadora. Me fez querer assistir de novo e levar comigo todas as pessoas pretas que me cercam.
Outra coisa muito importante nas produções do Emicida é fortalecimento de quem está na luta com ele, levando para os seus álbuns e seus palcos parcerias com outros cantores, como o Rashid, a Drik Barbosa, e vários outros de dentro do rap e de outros estilos musicais. Para além disso, com a empresa – a Laboratório Fantasma – que criou com Evandro Fióti (seu irmão), segue impulsionando carreiras e gravando discos de outros artistas.
As músicas do Emicida os seus demais projetos, relatam sobre o que é ser uma pessoa preta não apenas de uma perspectiva de dor, mas fala de amor, liberdade, autocuidado, sanidade mental, fala do valor ancestralidade e da importância do coletivo para a manutenção das nossas resistências, até porque tudo aquilo que nos constitui passa pelas relações que estabelecemos uns com os outros, social e culturalmente. Enxerga as pessoas pretas como potência, colocando-as no centro de suas narrativas, contrariando todo e qualquer discurso que a cultura hegemônica branca segue tentando nos entubar. No início da versão ao vivo da música “Principia”, Emicida relata:
“A primeira vez que eu fui na África, meu amigo Chapa me levou num museu que tem em Angola, que eles chamam de Museu da Escravidão e naquele lugar tinha uma pia, e tava escrito um texto na parede que era mais ou menos assim: “foi nessa pia que os negros foram batizados e através de uma ideia distorcida do cristianismo, eles foram levados a acreditar que eles não tinham alma”. Eu olhei pro meu parceiro e naquele dia eu entendi qual era a minha missão. A minha missão cada vez que eu pegar uma caneta e um microfone é devolver a alma de cada um dos meus irmãos e das minhas irmãs, que sentiram que um dia não teve uma.”
Me atrevo a dizer que o rapper vem cumprindo sua missão com maestria. A obra de Emicida, assim como a música rap, pode ser considerada uma forma de manifestação política, de luta por direitos, pela inserção social da população negra e, de ressignificação, não só das narrativas que são difundidas na sociedade, mas dos espaços físicos e sociais em que essas narrativas estão sendo construídas. O rap é uma plataforma de resistência, e o Emicida é importante um porta-voz dessa resistência assim como muitos outros cantores de rap que vieram antes, os que estão no corre com ele e os que ainda estão por vir.
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