A “cristofobia” brasileira desembarcou na ONU. Ao final do seu discurso na abertura da 75º Assembleia Geral das Nações Unidas, o presidente Jair Bolsonaro exortou a comunidade internacional a lutar pela liberdade religiosa e combater a “cristofobia”. No minuto anterior, o presidente havia declarado abertamente o predomínio de uma identidade religiosa no país. “O Brasil é um país cristão e conservador”, disse.
Embora as duas frases estejam impregnadas de camadas próprias de significados, convêm analisar “o conjunto da obra”. Enquanto a declaração de que o Brasil é um país cristão pode ser lida como um deslocamento do eixo discursivo que o próprio presidente vinha adotando até aqui – ao tantas vezes afirmar que o Estado brasileiro é laico, mas o governo é terrivelmente cristão -; a escolha deliberada do termo “cristofobia” revela estratagemas e contradições.
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Segundo o Datafolha, 50% dos brasileiros declaram-se católicos e 31% evangélicos. Este segundo grupo é uma comunidade em franca ascensão numérica e econômica, com amplas possibilidades de ação e articulação no aparato do Estado. Pode haver perseguição nestas condições?
Primeiramente, é preciso compreender que a noção de “cristofobia” não é nova. O termo foi incorporado à gramática dos líderes político-religiosos neoconservadores como uma tentativa de inverter a chave das denúncias de homofobia produzidas após a redemocratização do país, com a reentrada dos movimentos civis brasileiros no debate público. Um caso interessante ilustra o trajeto que o conceito percorreu das igrejas à ONU. Em 2016, a Câmara Municipal de São Paulo chegou a aprovar lei que criava o Dia do Combate à Cristofobia, em resposta à performance de uma transsexual que protestou contra a bancada evangélica na Parada do Orgulho LGBT. O projeto, que acabou sendo vetado pelo então prefeito Fernando Haddad (PT), era de autoria de Eduardo Tuma (PSDB), atual presidente da Casa e pastor evangélico da igreja Bola de Neve Church.
Se a noção de cristofobia pode aparecer neste tipo de maquinação burocrata, a um só tempo ela também é útil porque evoca a tradição cristã do martírio, e cria um dispositivo útil sobre o qual se escora um projeto de poder e hegemonia.
PublicidadePois bem. Apesar de tudo isso, cabe dizer que, sem dúvida, no Brasil há preconceito contra um determinado nicho cristão – mais precisamente, contra os evangélicos. No campo intelectual brasileiro, eventualmente formulações equivocadas e reducionistas atribuem o avanço do evangelicalismo ao predomínio da pobreza e à baixa escolarização nos territórios de periferia. Não é possível deixar de observar, também, que o racismo motiva certo ânimo acusatório contra os fiéis, especialmente dirigido aos pentecostais, segmento onde mulheres negras são maioria.
Não é verdadeiro, entretanto, que haja perseguição aos evangélicos, tampouco ao conjunto dos cristãos brasileiros. O discurso presidencial vale-se de um dado empiricamente verificável para alegar uma realidade inexistente. Não há cristofobia no Brasil, ao contrário; líderes evangélicos tem sido bem-sucedidos em eleger prefeitos, governadores e formar coalizões no judiciário. Há uma enorme e lucrativa produção de bens culturais direcionada aos fiéis. De 506 casos de intolerância religiosa registrados pelo Disque 100 no ano passado, 23 foram contra segmentos evangélicos, e a maioria absoluta dos xingamentos, agressões físicas e danos materiais foram direcionados aos adeptos de religiões de matriz africana.
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Assim como a cristofobia é estratagema poderoso, o mesmo se pode dizer do recurso retórico de afirmação da maioria, também presente no discurso do presidente. De modo recorrente, a ministra Damares Alves, os deputados da bancada evangélica e outros atores interessados vem utilizando o argumento da maioria cristã como passe-livre para justificar o enviesamento das políticas públicas e os privilégios de igrejas. Recentemente, em defesa do ensino religioso nas escolas, membros do Instituto Brasileiro Direito e Religião (IDBR) apresentaram em artigo e em vídeo uma longa exposição sobre o modelo brasileiro de laicidade e o direito à garantia do ensino religioso em escolas públicas. “Em um país com 90% de cristãos, é mais do que natural que a religião predominante que vá grassar na escola pública se conforme com a fé de mais de 90% daquelas pessoas, que é a fé cristã”, disse Jean Regina, um dos advogados do Instituto.
Em audiência realizada em agosto do ano passado na Câmara dos Deputados, o ministro das Relações Exteriores, Ernesto Araújo, declaradamente um católico conservador, disse que a política externa do governo é contrária ao uso da palavra “gênero” e que este direcionamento expressa a vontade popular. A declaração foi avalizada pela deputada Chris Tonietto (PLS-RJ) e o senador Major Olímpio (PSL-SP). Como consequência óbvia, em junho de 2020 os diplomatas brasileiros seguiram recomendações do Itamaraty para influenciar resoluções voltadas ao combate à violência e discriminação contra mulheres e meninas no Conselho de Direitos Humanos da ONU. Ironicamente, ao operar nestes termos na política externa, o Brasil vem se alinhando à Arábia Saudita, país onde a lei muçulmana (a Sharia, base da constituição do país) interdita o pleno exercício da fé cristã.
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