No dia 2 de outubro de 2022 serão eleitos, por cerca de 150 milhões de brasileiros, 27 senadores, 513 deputados federais e algumas centenas de deputados estaduais e distritais.
Qualquer pesquisa de opinião realizada imediatamente depois de conhecidos os nomes dos eleitos apontará, com ampla folga, uma visão profundamente negativa acerca da grande maioria dos parlamentares escolhidos pelos eleitores alguns dias antes.
A última afirmação (constatação) é estranha, mas perfeitamente explicável. Com efeito, a maioria dos cidadãos mais ou menos esclarecidos, conscientes e politizados “sentem” o cheiro de alguma coisa podre no processo eleitoral. Não conseguem identificar precisamente o que “se passa”. Entretanto, observando o perfil dos eleitos, boa parte deles ilustres desconhecidos ou sem referências mais sólidas de atuação política ou profissional, “percebem” a prevalência de procedimentos, no mínimo, duvidosos nos sucessos eleitorais.
Sem pretensão de exaurir a revelação das práticas eleitorais mais nefastas, buscarei, em poucas linhas e com limitado conhecimento acerca dos malfeitos do lado deletério da Força, mostrar, em pinceladas gerais, como são eleitos (maioria) uma vasta gama de políticos venais, interesseiros, aproveitadores, carreiristas, vendidos, negociantes, enganadores, etc, etc, etc.
Essa legião de parlamentares envolvidos com tudo que não presta são filhos das várias vertentes dos “votos fisiológicos”. No mundo da política, a palavra “fisiológico” identifica relações baseadas na troca de favores pessoais e benefícios a interesses privados. Nesse campo (ou nessa lama), os interesses coletivos e sociais, relacionados com a maioria da população, são tratados de forma secundária ou mesmo desprezados.
Uma campanha eleitoral baseada no “voto fisiológico” segue um roteiro caracterizado por algumas ações ou procedimentos bem conhecidos no mundo da política mais repugnante (e ignorados pela sociedade de uma forma geral). Destacamos dois expedientes muito eficientes para gerar votos (em quantidade) para qualquer pessoa, conhecida ou desconhecida, munida da soma (grande) de dinheiro necessária para movimentar as A contratação interesseira de cabos eleitorais rende algumas dezenas de milhares de votos quando operacionalizada pelos profissionais certos do submundo mais abjeto da política. Imagine 3000 pessoas remuneradas com 1000 reais durante 2 meses de campanha. Elas vão agitar bandeiras, fazer número em eventos e distribuir panfletos? Também. Mas essa é a parte nitidamente secundária da “coisa”. O aspecto mais relevante é a promessa de alguma vantagem, normalmente emprego, se o candidato for eleito. Mas esse emprego reclama que o cabo eleitoral apresente uma lista com pelo menos 20 (vinte) nomes de eleitores comprometidos em votar no candidato apoiado pelo cabo eleitoral. Essa lista deve conter necessariamente número do título eleitoral, zona e seção de votação (para a devida verificação se os votos, como quantitativo total, aparecem no boletim de urna).
PublicidadeO outro expediente amplamente utilizado no campo do “voto fisiológico” é a compra de lotes de votos controlados por certas lideranças comunitárias, religiosas e afins. O termo utilizado foi “compra”. Embora criminoso, esse comportamento é realizado sem o menor pudor e em grande escala, notadamente, mas não só, nos bairros ou regiões que abrigam as parcelas mais vulneráveis da população.
O pastor da Igreja do Evangelho Multidimensional (referência hipotética) mantém influência sobre um conjunto de 500 eleitores em Guaporé do Leste (outra referência inventada). Esse lote de votos pode ser adquirido por 100, 200 ou 300 mil reais pelo candidato que dispuser do numerário. Programa político? Propostas? Compromissos de atuação parlamentar? Métodos de exercício do cargo? Tudo isso é irrelevante. Sequer é tratado. O que interessa e é devidamente acertado: a) o número de votos no lote; b) o valor do lote; c) a forma de pagamento e d) a lista dos eleitores (sempre com número do título, zona eleitoral e seção, para conferência da “fidelidade” dos votos comprados).
Percebeu a onipresente lista de eleitores com os dados “necessários” (número do título, zona e seção eleitorais)? Veja, a propósito, esse esclarecedor (e estarrecedor) registro da jornalista Míriam Moraes, quando foi candidata do Legislativo:
“No meu primeiro dia ganhei dois ‘apoios’. Uma diretora disse que ajudava os alunos formandos do ensino fundamental e do ensino médio a conseguir candidatos que bancassem a formatura deles.
‘Não sabe o quanto eles sonham com uma festa de formatura’, suspirava.
A coisa funcionava assim:
- Ela organizava a reunião com os formandos.
- O candidato anotava o número do CPF, título de eleitor e zona eleitoral de cada aluno.
- Após a eleição, o candidato fazia a conferência nas zonas eleitorais para checar se teve mesmo o número de votos que constavam nos locais em que os alunos votavam. É possível conferir pelo boletim do resultado eleitoral os votos em cada sessão.
- Se o número mínimo de votos conferisse com os dos alunos, a festa estava garantida.
Fiquei horrorizada ao ver a naturalidade com a qual a diretora me explicou o arranjo. Ao chegar em casa, recebi pelo telefone o segundo apoio, que veio de uma aluna, organizadora das atividades esportivas da escola. O preço era bem menor, bastava os uniformes dos times de vôlei e futebol, e ela garantia os votos no mesmo sistema de anotação dos títulos e zonas eleitorais. Percebi que aquilo era novidade só pra mim, nas escolas, a prática é corriqueira” (Livro: 10 coisas que descobri sobre corrupção e política quando fui candidata. Um guia para candidatos e interessados em entender como funcionam as campanhas eleitorais e os bastidores da corrupção).
Mesmo essas rápidas observações permitem entender a eleição de ilustres desconhecidos e pessoas reconhecidas inaptas para o desempenho de um mandato parlamentar ou qualquer posto de maior responsabilidade e que requeira um mínimo de conhecimento e raciocínio. Com o volume certo de recursos e os operadores hábeis é viável eleger, como parlamentar, qualquer pessoa, rigorosamente qualquer pessoa (João, Pedro, Paulo, Periquito, Papagaio, etc, etc, etc).
Mas o pior vem depois. A parte mais triste, mais medonha, mais horrorosa desse filme de terror está reservada para o exercício do mandato parlamentar. Se o eleito literalmente comprou seus votos, não tem compromisso ou satisfação a dar a ninguém. Nessas circunstâncias, o desempenho do mandato parlamentar se transforma numa sucessão de negociações, boa parte delas claramente ilícitas (negociatas), voltadas para obtenção de todas as vantagens possíveis e imagináveis. Existe, é fácil de perceber com o acompanhamento do noticiário, mesmo da grande imprensa, uma frenética atividade relacionada com emendas ao orçamento, liberação de verbas, convênios, compras diretas (com e sem contratos) e licitações (de bens, serviços e obras). Como instrumentos para viabilizar essas movimentações observamos a “necessária” indicação de pessoas de confiança para cargos comissionados viabilizadores dos procedimentos administrativos de interesse (são as “pessoas certas” nos “lugares certos”).
Outra manifestação profundamente reprovável dos mandatos decorrentes de “votos fisiológicos” é a adesão, via de regra, aos interesses socioeconômicos mais elitistas. Esses parlamentares, na maioria dos casos, dão sustentação política para a construção e manutenção de trilionários mecanismos de transferência de riqueza do conjunto da sociedade (mais de 99% da população) para uma minoria de privilegiados (menos de 1% da população). Esses instrumentos se manifestam de diversas formas. Entre outros, podem ser destacadas: a) tributação preponderante do consumo de mercadorias e serviços; b) juros estratosféricos (o Estado, as famílias e as empresas pagam cerca de 1,5 trilhão de reais de juros anuais para os bancos no Brasil); c) benefícios fiscais; d) subsídios; e) sonegação fiscal e f) transferência de recursos para paraísos fiscais (calcula-se que um punhado de brasileiros possuem depósitos da ordem de 2,5 trilhões de reais por lá). Nessa linha, são dados votos para toda sorte de proposições legislativas voltadas para restringir direitos sociais e viabilizar uma forte concentração de riqueza com a manutenção e ampliação de iníquas desigualdades socioeconômicas (Reforma da Previdência, Reforma Administrativa, Reforma Trabalhista, Teto de Gastos Sociais, etc, etc, etc).
Existem, paralelamente a esse “fisiologismo pesado” (ou hard), fisiologismos “mais leves” (ou soft), como aqueles relacionados: a) com a formação de grupos políticos; b) distribuição enviesada de recursos decorrentes de emendas parlamentares e c) os de inspiração religiosa. Também existe um modo alternativo de fazer política identificado, em linhas gerais, como “voto de opinião”. Essas vertentes serão exploradas nos próximos escritos desta série.
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