Por que é tão difícil a gente conhecer as mulheres negras que atuam na área das ciências exatas e tecnológicas? Me peguei pensando nisso após assistir pela terceira vez o filme “Estrelas Além do Tempo”, que traz a história de três cientistas negras – Katherine Johnson, Dorothy Vaughn e Mary Jackson – que trabalharam na NASA na década de 1960 e foram muito importantes para que a agência espacial conseguisse levar o homem ao espaço. Como eu nunca tinha ouvido falar dessas mulheres antes, se esse filme é baseado numa história real? Por que conhecemos tão pouco sobre elas e sobre as mulheres negras brasileiras que também atuam nessas áreas?
O estereótipo construído socialmente sobre o profissional das ciências exatas e tecnológicas nos leva diretamente à imagem de um homem branco e isso se repete em quase todas as referências que aparecem tanto na mídia quanto nos livros de História e de Ciências, que nos são apresentados nas escolas. Essas obras não colocam as mulheres negras como produtoras da ciência e da tecnologia. Entretanto, isso não significa que essas pessoas não existam, mas nos apresenta um traço de apagamento e invizibilização, pautados no machismo e na estrutura racista da nossa sociedade.
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A doutora em bioquímica Viviane Gomes, atuante na linha de frente do combate ao coronavírus, conta que a inspiração para seguir carreira na área de ciência e tecnologia veio de uma professora de ciências negra quando estava no ensino fundamental.
Apesar do Brasil ser um país aonde a maioria da população se autodeclara negra e mais de 50% serem compostos por mulheres, os homens brancos ainda tomam conta dessas áreas de pesquisa. Segundo os dados do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep), o percentual de mulheres negras doutoras professoras de programa de pós graduação é inferior a 3%.Pesquisa realizada pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) no ano de 2015, apenas 7% do total de bolsas de produtividade foram destinadas a mulheres negras. Essa mesma pesquisa mostra que das 91.103 bolsistas da instituição cursando pós-graduação, em formato de Iniciação Científica, Mestrado ou Doutorado, mulheres negras que realizavam pesquisas voltadas para ciências exatas são pouco mais de 5.000, ou seja apenas 5,5%. Na relação do CNPq, mulheres são 35% do total de bolsistas que receberam para pesquisar dentro das áreas em questão. Entre essas, as pretas são apenas 4%.
Ao tentar ingressar nesses espaços, além de entrarem em um ambiente dominado por homens, as mulheres negras também precisam enfrentar as barreiras que o racismo impõe. Racismo esse que está fundado na estrutura de todas as instituições e relações sociais, num país que foi o último a abolir a escravidão no continente americano.
Além do racismo, o machismo e as pressões sexistas também contribuem para que elas acreditem que não podem ocupar esse lugar. Historicamente as mulheres são ensinadas desde pequenas que existem coisas, brinquedos, comportamentos, lugares e tipos de trabalho que são masculinos e outros que são mais “recomendados” para as mulheres. As atividades “voltadas” para o feminino são sempre aquelas que estão ligadas ao cuidado com o outro, com os afazeres domésticos, com as questões ligadas a padrões de beleza.
Nas instituições de ensino onde existe um número significativo de pessoas negras (escolas públicas, pré-vestibulares comunitários e sociais), as vivências nos mostram que que o sonho possível para a maioria das mulheres negras está fundado, não só nesses valores, mas aonde existe referência, onde estas conseguem achar que é possível chegar. As escolhas sobre carreira e vida profissional estão referenciadas, muitas vezes, nas faculdades de psicologia, serviço social, pedagogia (e nos demais cursos de licenciatura), enfermagem, comunicação, entre outros. E, em número menor, estão as “pretensões” para engenharia, física, matemática, astronomia e cursos afins. E mesmo a gente tendo vivido um período em que existam bolsas, incentivos acadêmicos e várias iniciativas para a inserção das mulheres negras nesses espaços, a aspiração às ciências exatas ainda são menores.
Sabemos que estamos em franco processo de mudança. Vemos um questionamento crescente nas novas gerações de jovens levando adiante a luta feminista e antirracista, mas carecemos de referências que nos tragam a dimensão do sonho possível.
Identificar as mulheres negras e cientistas é o primeiro passo importante na construção do processo de mudança do cenário de desigualdade econômica, social e de acesso à educação, onde as vivências das mulheres negras são marcadas pela exclusão e invisibilidade dos espaços acadêmicos e políticos que produzem conhecimento científico nas área das ciências exatas e tecnológicas.
Para que isso aconteça, histórias como a da biomédica Jaqueline Goes de Jesus, mulher negra e nordestina que movimentou as mídias por ser uma das coordenadoras da equipe que sequenciou o genoma do vírus SARS-CoV-2 em 48 horas, e de muitas outras cientistas negras precisam ser conhecidas não só na atualidade, mas pelas gerações futuras.
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