O Brasil parece ter retornado ao início dos anos 1980, época na qual o país ia para o buraco enquanto não se podia falar Camisa de Vênus em público
Se eu tivesse que comparar o momento atual do país com algum outro período histórico, definitivamente seria com a primeira metade da década de 1980. Acredito que os saudosos dos tempos da ditadura militar ─ do milagre econômico e da ordem imposta à força ─ só o conseguem sê-lo por cumprirem à risca o pedido do último presidente fardado: “Me esqueçam!” Afinal, os estertores da ditadura não deixaram saudade em ninguém: foram tempos de recessão econômica, inflação descontrolada, desemprego em massa, miséria e fome disseminadas, desesperança no futuro. Parece familiar?
Essa sensação de revival indesejado ganhou força quando me deparei com as recentes declarações do ministro da Educação, Milton Ribeiro, em aula magna na Universidade Federal da Paraíba (UFPB). Ao defender a ignorância das crianças em relação às questões sexuais, o pacato pastor, ruborizado como se estivesse assistindo ao Baile da Gaiola, protestou: “Crianças com nove, dez anos não sabem ler. Sabem tudo, com respeito a todas as senhoras aqui presentes, sabem até colocar uma camisinha, mas não sabem que ‘b’ mais ‘a’ é ‘ba’. Estava na hora de dar um basta nisso.”
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Deixemos de lado o fato de que somente no ano passado mais de 17 mil jovens de até 14 anos deram à luz segundo os dados do Painel de Monitoramento de Nascidos Vivos, do Ministério da Saúde. Afinal, esse governo ignora tudo o que sabemos desde Freud até os dias atuais sobre a sexualidade infantil, enxergando as crianças como anjinhos puros e assexuados vindos diretamente do céu. Mas o que realmente chamou a atenção foi o fato do ministro pedir escusas para as senhoras presentes para falar a palavra camisinha! Até a última vez em que eu havia checado no dicionário, “camisinha” não era um palavrão: pelo contrário, era presença obrigatória nas campanhas de conscientização do Ministério da Saúde.
Palavra proibida
Realmente houve um tempo em que essa palavra era malvista – não na sua forma diminutiva hoje conhecida, mas sim na original: Camisa de Vênus. Ninguém melhor que o vocalista Marcelo Nova para contextualizar: o eterno parceiro de Raul Seixas explicou em entrevista ao Programa do Porchat que o termo que batizou a banda baiana surgida em 1980 era considerado um palavrão. “O cara na farmácia não se dirigia ao farmacêutico para pedir em voz alta. Ele esperava num cantinho, num momento em que não houvesse senhoras no recinto e dizia baixinho: você tem Camisa de Vênus aí?”
O nome da banda, no melhor estilo punk da época, foi adotado realmente para chocar. No livro de entrevistas O galope do tempo, Marcelo Nova recorda que, no princípio, os jornais de Salvador só se referiam à banda como Camisa de … (reticências). Ele conta também que, em uma reunião com a Som Livre, gravadora ligada à Rede Globo e que lançou o primeiro disco dos baianos, foi pedido à banda que trocasse de nome para algo menos ofensivo. A resposta de Marcelo Nova foi impagável (é melhor pular essa parte, ministro!): “Se não pode ser Camisa de Vênus, só vejo um nome possível: Capa de Pica!” A afronta resultou no fim do contrato com a gravadora e na retirada do disco de seu catálogo, nada, no entanto, que impedisse o Camisa de deixar sua marca na história da música brasileira embalado pelo grito de guerra de seu público (isto sim é um palavrão, ministro!) “bota pra foder!”
Tânatos sem Eros
Passaram-se mais de 40 anos e felizmente ninguém mais precisa sentir vergonha ao ir a uma farmácia comprar camisinhas. Devemos sim nos enrubescer por termos eleito um governo tão retrógrado e hipocritamente puritano que finge querer defender nossos inocentes anjinhos enquanto regozija-se pelos mais de 400 mil CPFs cancelados por seu negacionismo homicida. Um governo que prefere o sangue ao esperma, as armas mortíferas aos falos fecundadores, a ordem repressora ao sexo vital e contestador. Um governo que tornou a camisinha desnecessária, pois, afinal, conseguiu brochar todo um país.
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