Entre o final dos anos 90 e início dos anos 2000, no bairro de Coelho Neto, subúrbio do Rio de Janeiro, cursei o antigo primário, atual ensino básico, na escola municipal General Osório. Quando passei para a antiga 2ª série, atual 3° ano, fui aluna da “tia” Maria Tereza, uma mulher branca, com cabelo pouco grisalho e corte tipo Chanel. Ela aparentava ter uns 50 anos, usava um óculo com uma bonita armação de cor vinho, sempre trajava roupas elegantes e discretas. Estava sempre com as unhas bem-feitas: eu prestava bastante atenção neste detalhe, pois minha mãe, além de faxineira, também era manicure.
Atualmente, na segunda década do século XXI, quando este artigo está sendo escrito, há uma onda de saudosismo dos anos 90, em parte, pelo fato de que hoje em dia, devido ao irremediável problema da segurança pública no Brasil, a aceleração da “cultura do isolamento” (em razão da pandemia de covid 19) e o acesso mais facilitado a equipamentos e meios digitais como forma de entretenimento, trabalho, estudo e interações sociais, pouco a pouco, perdemos as delícias dessa década, perfeitamente expressas numa paródia, feita pelo produtor musical Marcus Eni, da música “Girls Just Want To Have Fun” da cantora Cyndi Lauper:
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“eu sonhei / que tinha viajado pros anos 90 e foi incrível demais / tudo era diferente e cheio de cor / igualzinho a foto dos meus pais / as festas eram bem mais legais / E a noite, ninguém ficava em casa, geral ia pra rua brincar / pique-bandeira, queimado, alerta cor / até a mãe gritar pra entrar / porque deu a hora de jantar / televisão de tubo / Super Nintendo / geral trocava cartinhas de amor, nada de celular / pra ver filme tinha que alugar / fliperamas / locadoras”.
Marcus, criador do personagem “Macaco Severino”, que faz muito sucesso nas redes sociais, conseguiu expressar perfeitamente em sua paródia as maiores qualidades da última década do século XX. Falou da década morta utilizando o mesmo eufemismo com o qual se fala dos falecidos: ressaltando seus belos momentos e deixando de lado tudo aquilo que envergonharia a sua trajetória. A paródia, que é uma inteligente e oportuna sacada de seu produtor, é também um retrato, ultra processado no Photoshop, a respeito da classe média urbana brasileira daquele período e muita gente tem escolhido relembrar os anos 90 desta forma, o que é uma metáfora, praticamente perfeita, de como a nossa sociedade lida com sua própria memória.
A verdade é que os anos 90 foram bem mais do que só diversão. Se espremêssemos esta década escorreriam os mais diversos tipos de bullying, racismo (ainda que pareça redundante citar, não é) e outros tipos de violências. Quase tudo era hostil, ainda mais se você fosse uma criança como eu: “pobre”, “favelada”, “neguinha do cabelo duro”, “testão de amolar facão”, “beiço de mula”, “mais feia que um canhão” e “Raimunda, feia de cara, mas boa de bunda”. Todas essas alcunhas pejorativas retratam muito bem as dores de ter sido uma menina negra na década de 90. Agora, lembremos da “tia” Maria Tereza, professora de uma turma de crianças menores de 10 anos. O que será que saía dos seus finos lábios para aquelas crianças, em sua maioria pretas, nos maravilhosos anos 90?
A principal clientela da escola municipal General Osório vinha das favelas localizadas em seu entorno, como Favela de Acari, Morro do Jorge Turco, Pedreira, Faz Quem Quer e Cafúa. A maioria dos meus colegas, assim como eu, não conheciam o próprio pai e viviam expostos a guerra entre facções e polícia militar, em alguns casos nem podiam ir embora juntos para casa devido residirem em territórios de facções rivais. Alguns moravam com os avós em barracos de madeira, outros viviam em casas pequenas com uma grande quantidade de pessoas e muitos tinham que ficar sozinhos em casa, esperando a mãe retornar de uma longa jornada de trabalho. Diante de todo esse contexto, a professora Maria Tereza entrava na sala, olhava para nós com um olhar de desprezo e superioridade, deixava seus pertences em sua mesa e começava o seu terrorismo diário. Ela iniciava o dia organizando a sala, não para propiciar um melhor ambiente de aprendizagem, como colocar na primeira fileira os alunos de mais baixa estatura ou com problema de visão, mas para ficar longe dos alunos feios, segundo palavras da própria professora.
No meu primeiro dia de aula com Maria Tereza eu estava sentada na primeira fileira, bem no meio da sala, de frente para o quadro. Eu sempre gostei de me sentar na frente devido a minha tendência a fácil distração. Quando me sentava na primeira fileira, meu contato direto com o professor e com o conteúdo exposto no quadro negro, facilitava minha concentração e aprendizado. Ocorre que eu não era bem o sinônimo de beleza para os padrões racistas de Maria Tereza. Eu não era o que ela chamava de “tetéia”. Durante três ou quatro dias eu me atrevi a repetir a façanha de me sentar na primeira fileira e, dia após dia, Maria Tereza gritava: “O que você está fazendo aqui, menina? Já disse que seu lugar é lá atrás, pode sair daí, cadê minhas tetéias e tetéios?” Então ela esticava o dedo indicador e começava a baixaria: “você, você e você, para trás. você, você, você e você, para frente, bem pertinho da tia, eu gosto de trabalhar bem pertinho de gente bonita e cheirosa”, abrindo um largo sorriso logo em seguida. Desse modo todos os alunos brancos e de pele clara ficavam nas fileiras da frente, enquanto os demais seguiam para o famoso “fundão”, no qual a professora raramente se dava ao trabalho de olhar e onde era muito mais fácil levar chutes, puxões de cabelo e seguir ouvindo apelidos nada carinhosos dos outros colegas de turma, que apesar de serem tão excluídos como eu, já haviam aprendido, antes de mim, que seus lugares não eram perto de quem detinha poder e saber, e não precisaram passar, dia a após dia, pela humilhação de serem reconduzidos ao fundo da sala sob uma chuva de gritos e xingos, também dos colegas de turma que, talvez, numa tentativa de amenizarem a própria vergonha, me atacavam. Essa experiência condicionou por anos, o modo como eu me colocava diante das pessoas, sempre buscando me esconder e apresentando uma timidez muito forte.
Quando muito brava com o comportamento da turma, Maria Tereza olhava para o “fundão” e então dizia coisas como: “sabe de uma coisa, o meu papel aqui é fazer com que vocês se tornem, pelo menos, lixeiros, para os meninos, e empregadas (domésticas), para as meninas. E, se forem bonitas como minhas tetéias, e tiverem sorte, poderão ser recepcionistas”. Em outra ocasião ela disse: “nenhum aluno dessa escola ingressará numa universidade. Nunca terão base para isso, a prova é impossível para vocês”.
Naquela época não tínhamos celulares para documentar a injustiça. O racismo e a negação do racismo, calcado na falsa ideia de democracia racial, eram tão hegemônicos que os estudantes, incluindo eu, não conseguiam sequer compreender e/ou elaborar em suas mentes que aquela postura da professora era inadequada e que, portanto, deveria ser denunciada. Se eu sonhasse que havia viajado para os anos 90, não teria sido apenas um sonho bom, teria sido um pesadelo. E não há brincadeiras na rua e boletos pago por adultos que me fariam amar os anos 90. Das paquitas brancas a Maria Tereza, Zambi é quem me livre e guarde dessa onda saudosista do passado brasileiro, não que o presente esteja assim tão bom, muito pelo contrário.
Hoje, ainda lido com o ambiente escolar muito de perto e posso afirmar: a escola segue igual. Curiosamente, minha filha estuda na mesma escola na qual também estudou a cantora Anitta que, inclusive, através de seus stories no Instagram, teceu elogios a referida instituição de ensino: “uma escola pública maravilhosa”. De fato, o motivo de ter matriculado minha filha nesta escola foi a “fama” de escola modelo que ela sempre teve aqui na região, mesmo na época em que eu era estudante do ensino básico e fundamental. Era o objetivo de muitas pessoas estudarem neste colégio, por isso era muito disputado e difícil de conseguir vaga. Quem conseguia tinha a promessa de uma ótima educação, talvez equivalente à educação oferecida nas escolas particulares, nas quais, ainda hoje, aqui no Brasil, são sinônimo da mais alta qualidade em termos de ensino e da manutenção das desigualdades sociais e econômicas.
Quando afirmo que a escola não mudou, estou me referindo à estrutura escolar e a mentalidade das pessoas que compõem o corpo docente e administrativo das escolas, mas os alunos mudaram. Hoje eles já conseguem, ainda que de maneira desigual entre si, identificar situações de assédio na escola. Alguns deles já possuem smartphones com câmeras e gravadores, os quais podem ser utilizados na documentação de violências no ambiente escolar, seja por parte de outros estudantes quanto de professores e demais funcionários, o que já é um avanço. Mas não pense que a escola, arrisco dizer, como a instituição mais conservadora do Brasil, não tem se movimentado para impedir que os estudantes se mobilizem, se organizem e se empoderem do e no ambiente escolar. Na escola da minha filha, por exemplo, o diretor afirmou, durante uma reunião com responsáveis, que é “um homem extremamente conservador”. Duas das práticas mais rigorosas desta escola são o fato de que os estudantes são expressamente proibidos de conversarem entre si, até em momentos “vagos” e o fato de não haver mais recreio ou intervalo: os estudantes entram na escola, estudam e se vão. Essa escola não promove nenhuma interação entre os estudantes, desestimulando assim a cooperação e favorecendo o individualismo. Em outro momento, também numa reunião com responsáveis, quando as demais pessoas já haviam saído e ficamos apenas eu e meu marido para tratar de uma questão com o diretor, ao questioná-lo se a escola tinha algum trabalho de prevenção às droga, ele me mostrou, em seu smartphone, um sistema de câmeras nos qual podia acessar até mesmo de sua casa e mostrava vários ambientes da escola e, segundo ele, esse era o trabalho de prevenção ao uso de drogas que a escola estava “realizando”. Depois disso, ele nos confessou sua opinião a respeito dos alunos da escola a qual ele mesmo dirige. Segundo palavras do próprio diretor, para muitos desses meninos “ser preso é uma honra, pois, quando estes voltam para a favela, se sentem mais respeitados por já terem estado na cadeia”. E segue dizendo que “essas meninas aí não querem nada com estudo, querem ser mulher de bandido para morarem na melhor casa da favela”. Assim que ele terminou de proferir esses absurdos e viu a nossa cara de espanto, disparou: “ué, mas vocês não percebem isso na favela em que vocês moram?”.
Todos os dias minha filha me conta coisas duras que acontecem em sua escola, seriam necessários pelo menos mais cinco artigos para comentar tudo, mas um desses fatos foi o que mais me marcou. Certa vez, ela me contou o que a professora de música disse a sua turma, devido ao “mau comportamento” que apresentavam, que um dia ela se sentaria na plateia para assistir e rir do fracasso deles, seus próprios alunos. Nesse dia eu considerei, junto à minha filha, retirá-la da escola. No entanto, ela, para a minha surpresa, disse que não sairia da escola, mas permaneceria e lutaria por uma educação melhor, pois, segundo a minha valente jovem de 12 anos, quem precisa mudar é a escola, não ela. Essa atitude da minha filha me mostrou que essa nova geração pode estar trazendo ventos de renovação, ainda que de um modo muito controverso, sim, parece que temos avançado na luta antirracista e na educação. A escola tenta, ainda e sobretudo hoje, impor os velhos mecanismos racistas de reprodução das desigualdades, mas aqui em casa resistimos. Aqui, a criança sabe de onde veio e sabe que tem o direito de escolher para onde deseja seguir. Aqui, a criança também traz ensinamentos valiosos, como a noção de que sentar na primeira fileira não é uma concessão de uma professora ou mesmo de uma escola, mas é um dos frutos de uma luta coletiva, negra e internacional pelos direitos civis e pela emancipação da classe trabalhadora, sem a qual não estaríamos nos bancos das escolas e das universidades. Além disso, o problema do racismo não se resolve trocando de escola, pois ele está em todo canto e deve ser enfrentado. Nós duas, eu e minha filha, somos o pesadelo das Marias Terezas que existem por aí, pois desafiamos suas profecias racistas para vivermos os sonhos de nossos ancestrais.
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