Bráulio Santiago Cerqueira*
A economia brasileira, depois de encolher 7 p.p. no biênio 2015-16, passa pela pior retomada já registrada (IBGE/Contas Nacionais). Na crise da dívida externa, em 5 anos o produto retornou ao patamar pré-crise; o mergulho da atividade provocado pelo Plano Collor foi anulado 4 anos depois; já na crise atual, as projeções ao fim de 2019, antes do duplo choque da pandemia e do petróleo, apontavam que somente em 2021, ou seja, 7 anos depois, o PIB voltaria ao nível de 2014.
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Não só isso, a pior recuperação da história vem acompanhada de fragilização da indústria, de deterioração do mercado de trabalho, com desempregados e trabalhadores informais compondo metade da força de trabalho, e da piora do déficit externo em conta corrente e na conta financeira, com saídas recordes de capitais e desvalorização do Real.
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Desde o biênio 2015-16, os pilares da resposta governamental à crise são os mesmos: austeridade fiscal, com a política de compressão do gasto público social e de investimento; e redução do papel do Estado na regulação da economia, do trabalho e na proteção social.
Tais pilares não funcionam, ao menos para o grosso da população, pois:
Publicidade- a compressão permanente do gasto público dificulta a recuperação da demanda, incidindo negativamente sobre a produção e renda, prejudicando o consumo e investimento privados, ao contrário do postulado pelo governo com o Informe do PIB privado e do PIB público que, aliás, são conceitos que não existem;
- a abertura do pré-sal e de outros setores estratégicos da economia a empresas estrangeiras, a alienação de estatais para o capital externo (como no caso Embraer) e a ausência de políticas de desenvolvimento produtivo vêm ampliando estruturalmente o conteúdo importado da produção sem resultados pelo lado das exportações;
- o prosseguimento da liberalização financeira, aliado à redução da diferença entre taxa de juros doméstica e internacional, facilitou a fuga de capitais em contexto permanente de incerteza (e não de confiança) interna e externa; e
- as reformas trabalhista, da previdência e administrativa em curso dificultam a apropriação pelos trabalhadores dos ganhos advindos da lenta recuperação da demanda.
O governo com o “Plano Mais Brasil”, um conjunto de três Propostas de Emenda Constitucional (186, 187, 188/2019), pretendia aprofundar a agenda regressiva de reformas, justificando-o da seguinte forma:
“esta recuperação (da economia) poderia acelerar com o aprofundamento das reformas empreendidas nos anos recentes…Neste momento, faz-se necessário dar o passo decisivo para a estabilidade macroeconômica duradoura. As condições para a retomada do crescimento sustentável estão postas, mas precisamos do sopro da confiança da classe produtiva dos investidores.” (PEC 186/2019, Justificação).
As “condições para a retomada do crescimento sustentável” e para a “estabilidade macroeconômica duradoura”, no entanto, não estavam postas quando da apresentação do “Plano” em novembro, muito menos agora com o duplo choque do COVID-19 e do petróleo. À precarização do mercado de trabalho, ao processo de reconcentração de renda, à desindustrialização e ao aumento da fragilidade externa da economia, somam-se, neste momento, a paralisia momentânea da economia em quarentena, o colapso da bolsa – que de 119 mil pontos em janeiro caiu para 63 mil em meados de março (queima de mais de R$ 1,5 trilhão de riqueza) –, a fuga mais intensa de investidores para o dólar e a queda da demanda externa e dos preços das exportações.
Às vésperas de nova recessão de magnitude possivelmente inédita, o governo defendeu, no início do choque, “blindar” a economia doméstica com a aceleração das mesmas reformas e cortes de despesas que, supostamente, permitiriam que o “país tenha contas equilibradas e que promoveriam a transformação do Estado em favor da prestação de melhores serviços à população” (Paulo Guedes, 10 mar. 2020). Em verdade, prestação de piores serviços, como atestam os mais de 3 milhões de cidadãos na fila do INSS e do Bolsa Família, prejudicados pela insuficiência orçamentária e pela paralisação de concursos derivados das políticas que se pretende intensificar.
O governo também aventa, sem constrangimentos, “vender mais de 300 ativos (estatais) ainda em 2020 (pois) o Brasil tem pressa” (Jair Bolsonaro, 13 mar. 2020). Pressa para quê, para entregar a investidores e estatais estrangeiras ativos domésticos subvalorizados com o tombo da bolsa, do petróleo e do Real?
O momento é crítico impondo medidas extraordinárias, emergenciais e inéditas. A economia e a população precisam da proteção e de ações contracíclicas do governo, que é o único agente capaz de atuar na crise contra a corrente. Único porque: i) não busca o lucro; ii) seu gasto volta parcialmente como receita pública na forma de impostos; iii) cobra impostos; iv) emite moeda e não pode “quebrar” ou deixar de pagar a própria dívida denominada em Reais; e v) define a taxa de juros na qual se endivida.
Na França, o presidente Macron afirmou que o Estado fará tudo, “custe o que custar”, para evitar que a pandemia desestruture a economia francesa, garantindo, por exemplo, o pagamento dos empregados obrigados a ficarem em casa (Emmanuel Macron, 12 mar 2020).
No Brasil, de concreto, a reação do governo começou com a antecipação para abril do pagamento de metade do décimo terceiro do INSS e com a isenção de impostos para importação de medicamentos (Folha SP, 13 mar. 2020). Diante da rápida deterioração do cenário, nesta segunda-feira, 16 de março, o Ministério da Economia anunciou novas antecipações de transferências à população, como a da segunda parcela do décimo terceiro do INSS e do abono salarial, reincorporação de 1 milhão de beneficiários ao Bolsa Família, facilitação dos saques do FGTS e adiamento do prazo para pagamento ao fisco do FGTS e SIMPLES (Folha SP, 16 mar. 2020). Oficialmente estimou-se injeção adicional de R$ 147 bilhões na economia, o que não procede uma vez tratar-se principalmente de aceleração da execução da despesa pública, mas não de seu aumento. É pouco, não atenderá as necessidades dos 50% da força de trabalho desempregada ou na informalidade, e sequer compensa os efeitos contracionistas das regras fiscais em vigor aprofundados pelo “Plano Mais Brasil”.
Primeiro problema: a meta de resultado primário de 2020, fixada com base em receitas que não irão se concretizar e com despesas em queda, poderia desencadear no curto prazo, se não fosse alterada, uma guerra de todos contra todos por recursos insuficientes, insuficiência causada pela própria rigidez da meta. Na semana passada, 18 de março, o governo se mexeu decretando calamidade pública, o que, na prática, deixa o ano sem meta.
Em segundo lugar, a regra do teto de gastos impõe no médio prazo encolhimento das despesas do Governo Federal da ordem de 3,6 p.p. do PIB (R$ 260 bilhões) até 2026, um ajuste impossível mesmo após a redução dos mínimos constitucionais em saúde e educação (imposto pela regra) e da aprovação da Nova Previdência, que supostamente estabiliza as despesas previdenciárias em % PIB. A regra, além de inexequível, é disfuncional ao não permitir que as despesas acompanhem o crescimento da arrecadação ou da população, retirando, por exemplo, R$ 13,5 bilhões de recursos da saúde em 2019 na comparação com o regramento anterior (Bruno Moretti e Ana Paula Sóter, 27 fev. 2020).
A PEC 186/2019, a da Emergência Fiscal do “Plano Mais Brasil”, por seu turno, antecipa e aprofunda outros cortes de despesas, notadamente de pessoal, previstos em caso de descumprimento do teto de gastos. Ficam proibidos novos concursos, progressões funcionais, aumentos de salários e criação de novas despesas obrigatórias, e abre-se a possibilidade de redução de jornada e salários em até 25%. Precisamente o oposto do requerido pela população e economia nesse momento (FMI, 2020): mais gastos e contratações em saúde, expansão das transferências de renda aos mais pobres, mais subsídios a empresas e famílias para contenção do contágio e fortalecimento de outros serviços universais. Pior, como o teto de gastos será descumprido, mesmo com a adoção das “medidas emergenciais” que acentuam a emergência social e econômica, o arrocho sobre o funcionalismo e a oferta de serviços públicos seguirá, pelo menos, até 2026, quando há previsão constitucional de revisão da regra.
Além de acelerar o apagão das políticas públicas, incluindo o do SUS em meio à pandemia, a PEC 186/2019 fomenta a piora da atividade. Estudo da UFMG/Cedeplar estima retração de 1,4 % do PIB no curto prazo em função de uma redução linear de ¼ nos vencimentos e no consumo dos empregados da Administração Pública, que respondem por 12% da massa de salários. Em unidades da federação como o DF, onde respondem por 34% do emprego formal, o encolhimento da economia local poderia chegar a 4%, isso sem o efeito do COVID-19.
A hora é de suspender reformas que fragilizam o serviço público, amplificam a retirada de direitos dos trabalhadores e diminuem o fôlego do emprego, do consumo e do investimento. O “feirão” de venda do patrimônio público também deveria ser interrompido em meio à desvalorização violenta dos ativos domésticos. E medidas realmente emergenciais de defesa da saúde da população, do emprego, e da renda precisam ser endereçadas.
O primeiro passo para isso é a reformulação, não só no curto prazo, da meta de primário e das regras fiscais brasileiras que comprimem o gasto público social e de investimento, mesmo em momentos de subutilização da capacidade produtiva e do trabalho (como ao longo da lenta retomada brasileira) ou em conjunturas críticas (como a atual). Banco Central e Tesouro Nacional deveriam acomodar, via política monetária e orçamento, as demandas emergenciais da população. Por que não devolver ao SUS os R$ 13,5 bilhões dele subtraídos em 2019 e os outros R$ 15,0 bilhões devidos em 2020 pelo teto de gastos? Por que não garantir ao menos um salário mínimo para trabalhadores informais? Que tal co-patrocinar a folha de salários da iniciativa privada?
Enquanto o governo titubeia nessa direção – ou propõe aberrações como a Medida Provisória 927/2020 que permitia, numa primeira versão, a suspensão de salários por 4 meses –, o uso sem amarras das finanças públicas em defesa do sistema financeiro fragilizado pela crise já começou: o Banco Central irá acelerar a liberação de R$ 135 bilhões dos depósitos compulsórios aos bancos; BNDES, Caixa e Banco do Brasil, com mais de R$ 300 bilhões de títulos públicos em carteira, poderão comprar ativos de instituições financeiras em dificuldades, além de irrigar o sistema com crédito agrícola e de capital de giro; e a folga de capital dos bancos foi ampliada de modo a acomodar expansão de crédito de R$ 640 bilhões (Agência Brasil, 13 de mar. 2020).
O governo também poderia atuar decididamente em prol da vida, da prestação de serviços à população, da produção, do emprego e da melhor distribuição de renda e riqueza. Austeridade e reformas ultraliberais são restrições políticas, normatizadas em lei, à atuação nessas direções. Até quando?
*Mestre em Economia. Auditor Federal de Finanças e Controle. Secretário Executivo do UNACON Sindical.
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