Mário Sérgio Sobrinho*
O álcool é uma substância psicoativa disponível para grande parte das pessoas maiores de 18 anos de idade, cujo consumo, embora permitido, é arriscado, tanto que as mortes por abuso de álcool ocorrem cotidianamente e, inclusive, aumentaram 18,4% durante a pandemia, conforme dados do Sistema de Informações sobre Mortalidade, do Ministério da Saúde do Brasil.
A restrição ao consumo do álcool pelos mais jovens tem fundamento científico, pois além dos efeitos negativos diversificados que a substância causa à saúde humana, é sabido que ela afeta o desenvolvimento da área frontal do cérebro, o que ocorre até, aproximadamente, 25 anos de idade. Essa região do cérebro humano é responsável pelo pensamento abstrato, aferição das consequências dos atos e controle das atitudes.
A publicidade e o mercado do álcool, embora reconheçam a restrição da divulgação e da oferta dessa substância aos menores de 18 anos, indiretamente alcançam crianças e adolescentes, que são expostas precocemente à substância e podem suportar, além das bebedeiras, efeitos mais graves, tanto que em 2016, a Organização Mundial da Saúde (OMS) apontou ser a bebida alcoólica a maior responsável por mortes de brasileiros entre 15 e 19 anos, seja em razão de acidentes ou por paradas cardíacas.
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Acerca de o mercado do álcool alcançar o público com idade inferior ao limite legal para beber, o que ocorre aos 21 anos de idade nos Estados Unidos da América, estudo publicado pelo “Journal of Studies on Alcohol and Drugs” apontou que a indústria de bebidas ganhou bilhões com consumo ilegal de álcool entre menores. Referido estudo indicou que no ano de 2016 essa cifra representou cerca de 7,4% dos mais de US$ 237 bilhões arrecadados pela indústria das bebidas, se tratando de percentual elevado, mas decrescente, na medida em que, 5 anos antes, ou seja, em 2011, o montante ganho pelas fabricantes com venda ilegal de álcool para menores chegava a 10% do total arrecadado (US$ 20,9 bilhões).
É comum ouvir de um adulto que enfrenta problemas com o álcool descrever ter tido contato precoce com essa substância, descrição que atualmente encontra ressonância na Pesquisa Nacional de Saúde do Escolar (PeNSE) 2019, divulgada pelo IBGE, na qual foi apontado que “cerca de 63,3% dos estudantes de escolas públicas e particulares entre 13 e 17 anos já experimentaram bebida alcoólica e mais de um terço deles (34,6%) provou pelo menos uma dose antes de completar 14 anos. As meninas são mais expostas a essa iniciação precoce: 36,8%, contra 32,3% entre os meninos.” Além disso, referida pesquisa indicou que dos escolares que experimentaram bebidas alcoólicas, 47% revelaram ter tido episódios de embriaguez, enquanto 29,2% dos estudantes que experimentaram álcool declarou ter tido acesso à bebida em festas e 26,8% disseram ter conseguido comprar no mercado.
PublicidadeO consumo de álcool por adolescentes e crianças preocupa porque na faixa etária inferior aos 18 anos as pessoas são mais impulsivas e estão em período de desenvolvimento cerebral, sem falar que o uso do álcool entre crianças e adolescentes, também se associa a comportamentos arriscados diversos, como aumento da exposição às outras drogas.
A marcha inevitável do tempo leva crianças à adolescência e transforma adolescentes em jovens adultos. Chegar à fase adulta da vida consumindo regularmente doses elevadas de álcool pode prejudicar qualquer pessoa, especialmente, se tratando de jovem que não trabalha nem estuda, integrantes da “geração nem nem”, cuja taxa no Brasil, é maior que o dobro daquela constatada em países ricos. Acerca disso, um relatório produzido em 2020 pela Organização para Cooperação do Desenvolvimento Econômico (OCDE), apontou que 35,9% dos adultos brasileiros de 18 a 24 anos não estavam nem na escola nem empregados, enquanto a média da taxa de jovens que não estudam nem trabalham nos países mais ricos é de 15,1%.
Ao tratar da “geração nem nem”, maiores “quase” abandonados, como diz o refrão de famosa música, já foi dito ser “comum ver jovens que passam o dia inteiro navegando em suas redes sociais, jogando videogame, assistindo Netflix e YouTube e consumindo álcool e drogas.”
Sob o olhar técnico dos especialistas da Sociedade Brasileira de Pediatria (SBP) diversos e complexos fatores estão relacionados ao uso precoce de álcool, tais como, curiosidade e impulsividade, forma de desafiar a estrutura familiar e necessidade de aceitação, pressão dos pares e desejo de enfrentar novas experiências, além da baixa autoestima. Para reduzir riscos relacionados ao uso precoce de álcool a SBP recomenda constante acompanhamento familiar, sugerindo proximidade e diálogo doméstico constantes. Tais intervenções amorosas, desafiadoras e necessárias devem ser adotadas essencialmente pelas famílias menos estruturadas, nas quais o risco do uso precoce do álcool é aumentado pela falta de regras, ausência de apoio e precariedade de afeto. Em geral, os especialistas da SBP recomendam, ainda, conhecer hábitos e comportamentos da criança e do adolescente, verificar sinais de depressão e acompanhar as pessoas com quem os menores se relacionam, facilitando detectar precocemente eventuais situações de uso de álcool.
O tema, cuja abordagem é necessária, pode ser tratado, por exemplo, ao ser conversado no âmbito da família acerca de alguma situação relacionada ao álcool, tais como bebedeiras de algum parente ou conhecido, durante festas ou outras ocasiões, nas quais há oferta de álcool ou pode, também, ser introduzido a partir de situação trazida por filmes ou telenovelas. Novamente, a SBP adverte ser difícil, mas imprescindível, tratar desse assunto, mesmo pelos pais ou responsáveis que sentem dificuldades de falar sobre isso por fazerem, eles próprios, uso exagerado de álcool, por vezes, diante dos menores, comportamento que deve ser aferido e alterado.
A força e o apelo ao consumo, resultado do intenso e criativo marketing do álcool, geralmente vinculando situações de consumo dessa substância a momentos felizes da vida dos adultos, não são reduzidos pela advertência de o álcool ser impróprio ao consumo dos menores de 18 anos, por ser essa mensagem aditiva, em obediência legal, insuficiente para inibir os efeitos favoráveis ao consumo do álcool difundidos pela propaganda.
A família, a sociedade e a escola podem vivenciar diversas situações difíceis de lidar, resultantes do consumo indevido do álcool por crianças e adolescentes, tais como episódios de agressividade, desagregação, menor empenho nos estudos, aumento dos casos de bullying, entre outros, o que demanda de cada pessoa um mínimo preparo para prevenir e enfrentar racionalmente o consumo precoce do álcool.
Apesar de os adolescentes, habitualmente, buscarem os ambientes alegres e ruidosos das festas e outros locais descontraídos, tais lugares quando frequentados por esse público deve ser livre do álcool, cabendo reiterar que os especialistas da SBP destacam as graves consequências associadas ao uso de álcool por crianças e adolescentes, indicando entre elas, estar o álcool associado a principal causa de morte por acidentes automobilísticos entre adolescentes e jovens de 16 a 20 anos e que estar sob efeito de álcool aumenta o risco da prática sexual desprotegida, violência sexual, exposição a doenças sexualmente transmissíveis e risco de gravidez indesejada.
Anos atrás já fora verificado que “Por mais que o consumo de álcool por adolescentes na sociedade possa parecer banalizado (não é incomum a presença de bebidas alcoólicas em festas de adolescentes, patrocínios de bebidas alcoólicas – especialmente cerveja e bebidas ‘ice’), pesquisas demonstram que começar a beber em idade precoce é um fator muito importante que influenciará problemas futuros como álcool (Maggs e Schulenberg, 2005).” Essa situação é ainda mantida, tanto que estudos recentes da pesquisadora brasileira Zila Sanchez mostram a frequência e os riscos gerados a adolescentes e jovens habituados ao binge drinking (“beber pesado episódico”).
Por isso, se mostram imprescindíveis iniciativas práticas que enfrentem o uso precoce do álcool, como fez o Ministério Público do Estado de São Paulo, nas cidades de São José dos Campos e Taubaté, no Vale do Paraíba, vedando oferta de álcool em festas de formatura de adolescentes.
No aspecto legal são encontradas na Lei nº 8.069/1990 (Estatuto da Criança e do Adolescente – ECA) diretrizes com o seguinte teor, proibindo o álcool na fase da infância e da adolescência: a) vedação de conteúdo em revistas e publicações destinadas ao público infanto-juvenil trazendo ilustrações, fotografias, legendas, crônicas ou anúncios de bebidas alcoólicas (art. 79); b) proibição da venda de bebida alcoólica à criança ou ao adolescente e de produtos cujos componentes possam causar dependência física ou psíquica, ainda que por utilização indevida (art. 81, incisos II e III); e c) previsão de prisão para quem vender, fornecer, servir, ministrar ou entregar, ainda que gratuitamente, de qualquer forma, a criança ou a adolescente, bebida alcoólica (art. 243).
Seguindo essas diretrizes, o Decreto nº 6.117/2007, que aprovou a Política Nacional sobre o Álcool e dispôs sobre as medidas para redução do uso indevido de álcool e sua associação com a violência e criminalidade, recomendou intensificar a fiscalização quanto ao cumprimento do disposto nos artigos antes citados da legislação protetiva da criança e do adolescente.
O Estado de São Paulo, por seu turno, aprovou a Lei 14.592/2011, que proíbe a venda de bebidas alcoólicas a menores e, a partir da sua aplicação, o Centro de Vigilância Sanitária, da Secretaria Estadual da Saúde, divulgou ter autuado 3.310 estabelecimentos, 30% deles só na Capital e comunicou ter realizado mais de 2 milhões de inspeções durante o período de 10 anos de vigência dessa legislação.
Voltando à complexa questão da publicidade do álcool, se nota ampliação do seu potencial de divulgação pelo uso da tecnologia no ambiente da Internet, tanto que ao debater sobre projetos de lei em tramitação no Senado Federal, relacionados à restrição da propaganda de bebidas alcoólicas, o advogado do Instituto Alana, João de Aguiar Coelho, mostrou preocupação ao comentar que estudos internacionais “indicam a possibilidade de direcionamento, por meio de algoritmos em redes sociais, de propagandas de bebidas alcoólicas diretamente para adolescentes, de acordo com os interesses da indústria. Para ele, o Congresso (Nacional) também precisa avançar em uma legislação que proteja as crianças e os adolescentes também na rede.”
É, portanto, dever da família, da sociedade e do Estado tratar dos efeitos danosos do consumo do álcool por crianças e adolescentes e, também, lhes proteger com absoluta prioridade da oferta/propaganda/consumo precoce dessa substância, seguindo previsão do artigo 227, em sintonia com o artigo 220, ambos da Constituição Federal, o segundo que permite restringir legalmente a propaganda de substância nociva à saúde, como é o álcool, cujo consumo é decisão individual da pessoa adulta, observando que orientações médicas e previsões legais são opostas ao consumo dessa substância durante a menoridade.
* Mário Sérgio Sobrinho é procurador de Justiça do Ministério Público do Estado de São Paulo e membro do MPD.
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