Pablo Bezerra Luciano* e Lademir Gomes da Rocha**
O artigo “O ‘A’ da coisa: a identidade entre A-GU e a advocacia privada”, publicado em 29 de março de 2021 por Maurício Zanoide de Moraes e Fernanda Regina Vilares, é composto por imprecisões que precisam ser esclarecidas a bem da advocacia pública brasileira, não obstante não se discuta o propósito dos autores de contribuírem para a consolidação da instituição sobre a qual discorrem.
A primeira imprecisão decorre da assertiva de que no período pré-Constituição de 1988, “a defesa e o assessoramento do Estado brasileiro eram levados a cabo pelo Ministério Público Federal na maior parte dos temas”. Em verdade, no regime constitucional anterior, a consultoria e o assessoramento jurídicos do Executivo eram exercidos pela Consultoria-Geral da República, órgão integrante da Presidência da República, bem como por Consultorias Jurídicas no âmbito dos ministérios e pela Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional perante o Ministério da Fazenda (v. arts. 29 e 32 do Decreto-lei nº 200, de 1967). Nenhum desses órgãos de assessoramento e consultoria integrava o Ministério Público.
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Nos termos da Seção VII, do Capítulo VII, do Título I, da Constituição de 1969, o Ministério Público era considerado um órgão integrante do Executivo, cabendo-lhe representar judicialmente a União ou a Fazenda Nacional nas causas cíveis em que figurasse como autora, ré, assistente ou oponente, ou fosse por qualquer forma interessada (arts. 30, II, 34, III, 38, I, da Lei nº 1.231, de 30 de janeiro de 1951). É dizer: em prol da pessoa jurídica da União, o Ministério Público Federal só desempenhava funções de representação judicial, sem se imiscuir no assessoramento e consultoria jurídicos.
Na busca por identificar a natureza das funções do advogado público e a colocação da Advocacia Pública na estrutura organizacional brasileira, os autores destacam — também imprecisamente — que “o advogado público é incumbido de atividades de representação judicial e extrajudicial do Poder Executivo, bem como de atividades consultivas”. Ao longo do texto, os autores voltam a acentuar uma vinculação da advocacia pública ao Executivo, sendo certo que a Constituição de 1988 cuidou de inseri-la fora da estrutura organizacional dos 3 (três) poderes, classificando-a como uma das 4 (quatro) funções essenciais à justiça, ao lado do Ministério Público, da Defensoria Pública e da Advocacia em geral.
Diversamente do que os autores dão a entender, a Constituição em vigor também não limita ao Executivo as atividades de representação judicial e extrajudicial prestadas pela Advocacia Pública. Nos termos do art. 131 da Constituição, a Advocacia-Geral da (AGU) representa judicial e extrajudicialmente a União, por quaisquer de seus poderes e funções estatais, atividade que se estende às autarquias e às fundações públicas federais, que a rigor, não estão compreendidas no conceito de “Poder Executivo”.
PublicidadeOutra imprecisão bastante preocupante constante do texto de Maurício Zanoide de Moraes e Fernanda Regina Vilares é a afirmativa de que os advogados públicos “não possuem independência funcional, isto é, estão vinculados a pareceres e normas previamente existentes”.
Para os autores, em decorrência dessa suposta falta de independência funcional, existiria também um dever imposto aos advogados públicos de sempre “ajuizar ações, apresentar defesas ou recursos judiciais, salvo em casos expressamente autorizados por lei ou pareceres dos órgãos superiores”. Essas assertivas revelam que é grande a incompreensão sobre a advocacia pública, mesmo entre aqueles que buscam defendê-la.
É certo que toda função pública é exercida dentro de balizas normativas específicas. Há diversos códigos de ética e de condutas que regem a atuação de parlamentares, governantes, magistrados, membros do ministério público, advogados públicos, advogados privados, defensores públicos e outros agentes que fazem parte do aparato estatal. Numa República, ninguém tem carta-branca para agir como bem entende.
Não há espaço para arbítrio. Nenhum agente público age apenas de acordo com a sua própria vontade, desconsiderando código de normas ditado pela sociedade norteador de sua função. Então, nessa acepção, poderíamos dizer que nenhum agente público atua com independência, no sentido de absoluta indiferença a fatores externos ou de submissão exclusiva à sua própria vontade. Mas não é esse o sentido do termo “independência” que costumamos empregar para identificar o modo de desempenho de certas funções estatais.
Quando exercem a atividade jurisdicional, por exemplo, os juízes e tribunais encontram-se vinculados não apenas às leis e à Constituição. Conforme dispõe o art. 926 do Código de Processo Civil (CPC), um dos muitos deveres dos tribunais é o de uniformizar sua jurisprudência e mantê-la estável, íntegra e coerente. Além disso, por força do art. 927 do CPC, juízes e tribunais devem observar: a) as decisões do Supremo Tribunal Federal (STF) em controle concentrado de constitucionalidade; b) os enunciados de súmula vinculante; c) os acórdãos em incidente de assunção de competência ou de resolução de demandas repetitivas e em julgamento de recursos extraordinário e especial repetitivos; d) os enunciados das súmulas do STF em matéria constitucional e do Superior Tribunal de Justiça (STJ) em matéria infraconstitucional; e e) a orientação do plenário ou do órgão especial aos quais estiverem vinculados.
Contudo, nos termos dos arts. 1º, 4º, 5º, 6º e 7º do Código de Ética da Magistratura, a atividade jurisdicional norteia-se pelo princípio da independência funcional (art. 1º do Código de Ética da Magistratura), impondo-se aos magistrados o desempenho de suas atividades sem influências externas, cabendo-lhes denunciar qualquer interferência que vise a limitar sua independência. Esse é o significado da independência judicial. Ninguém pode coagir determinar a um juiz como pensar ou como decidir.
No âmbito da advocacia em geral não é diferente. Ninguém pode determinar como deve pensar um advogado público. Contudo, a advocacia pública ou privada não é terra sem lei. O advogado é responsável pelos atos que praticar no exercício profissional com dolo ou culpa, cabendo ao advogado cumprir rigorosamente os deveres consignados no Código de Ética e Disciplina (arts. 32 e 33 do Estatuto da Advocacia e da OAB-EOAB). Não há vale-tudo na advocacia. Atuando na área delimitada pelas balizas éticas de sua profissão, o advogado “deve manter independência em qualquer circunstância” (§ 1º do art. 31 do EOAB), agir com independência e por essa independência zelar (art. 2º, parágrafo único, II, e art. 4º do Código de Ética da Advocacia). Isso vale tanto para a advocacia pública quanto para a advocacia privada.
O advogado público não é um profissional despossuído de independência. Dispondo especificamente sobre o advogado público, dirimindo quaisquer dúvidas, o Código de Ética da Advocacia estipula que ele “exercerá suas funções com independência técnica, contribuindo para a solução ou redução de litigiosidade, sempre que possível” (§ 1º, art. 8º).
Como é óbvio, esse dever de independência não é absoluto, pois o advogado, público ou privado, está proibido de advogar contra literal disposição de lei, exceto se fundado na inconstitucionalidade, na injustiça da lei ou em pronunciamento judicial anterior (art. 6º, VI, do EOAB); emprestar concurso aos que atentem contra a ética, a moral, a honestidade e a dignidade da pessoa humana (art. 2º, VIII, “c”, do Código de Ética); expor os fatos em Juízo ou na via administrativa falseando deliberadamente a verdade e utilizando de má-fé (art. 6º do Código de Ética).
Especificamente quanto aos advogados públicos federais, a Lei Complementar (LC) nº 73, de 10 de fevereiro de 1993, traz algumas disposições sobre a vinculação técnica dos membros da AGU e de seus órgãos vinculados ao entendimento do AGU, que não excluem em rigor a independência técnica. Essas as disposições legais que estabelecem vinculações ao advogado público devem ser interpretadas como exceções ao estatuto básico dos advogados que é a independência técnica, a exemplo do disposto no art. 11, III, da LC nº 73, de 1993, que atribui às consultorias jurídicas a competência de “fixar a interpretação da Constituição, das leis, dos tratados e dos demais atos normativos a ser uniformemente seguida em suas áreas de atuação e coordenação quando não houver orientação normativa do Advogado-Geral da União”.
Mas o que é isso – orientação normativa do Advogado-Geral da União? É todo e qualquer pronunciamento do AGU? É todo parecer por ele aprovado? As respostas a essas indagações encontram-se entre os art. 40 a 43 da LC nº 73, de 1993. Dos termos de tais dispositivos legais, extrai-se o seguinte quadro de vinculações: a) parecer do AGU aprovado e publicado juntamente com o despacho presidencial, que vincula toda a Administração Federal; b) parecer do AGU aprovado, mas não publicado, que obriga apenas as repartições interessadas, a partir do momento em que dele tenham ciência; c) súmula da Advocacia-Geral da União, com caráter obrigatório quanto a todos os órgãos integrantes e vinculados da AGU.
Fora dessas estritas hipóteses, não há espaço para emprestarmos caráter vinculativo a outro tipo de manifestação do AGU. O AGU não dá ordens pessoais e específicas para que os advogados públicos digam isso ou aquilo em suas manifestações jurídicas. Pode, é certo, baixar normas. Mas normas são impessoais, diferentemente de ordens.
Decerto, um parecer do AGU não apreciado pelopPresidente da República não deve ser desconsiderado como se fosse um nada jurídico. Sem ser norma, ainda assim deve servir idealmente como objeto de atenção/consideração/deliberação por parte dos órgãos jurídicos da advocacia pública federal. Nessa hipótese, não podemos encarar esse parecer como um enunciado performativo, diante do qual devemos suspender nossos juízos críticos. Em outras palavras, não é porque no caso X, o AGU decidiu Y, que no caso Z, em todo assemelhado a X, devamos adotar a mesma conclusão Y. A manifestação não-normativa do AGU não deve desobrigar os integrantes da advocacia pública federal de pensar e de entregar às áreas consulentes a devida e tempestiva manifestação sobre a consulta feita, sem prejuízo da criação e da instalação de instâncias deliberativas tendentes a superar eventual dissonância de entendimento.
Isso quer dizer que os advogados públicos federais podem no consultivo fundamentadamente deixar de aplicar as conclusões e os fundamentos da manifestação sem caráter normativo do AGU, caso a considerem inconstitucional, ilegal ou ofensiva a regulamentos. Nenhum problema há nisso, pois a coerência no ordenamento jurídico não é algo que deva ser perseguido a qualquer custo, pois podemos ser coerentes insistindo para toda a eternidade no mesmo erro.
As manifestações não-normativas do AGU devem ganhar respeito e aderência dos órgãos da advocacia pública federal mais pelo seu valor intrínseco do que por força de uma suposta necessidade de uma busca inconsequente de uniformidade e coerência.
Então só faz sentido proclamar — como proclamaram os autores do artigo “O ‘A’ da coisa: a identidade entre A-GU e a advocacia privada” — que os advogados públicos não disporiam de independência no desempenho de suas funções, se excluirmos da ideia de independência qualquer tipo de submissão a normas. Nesse quadro, nem mesmo os magistrados seriam considerados independentes, o que nem sequer é digno de discussão doutrinária de monta.
Os autores ainda contribuem para disseminar o antigo preconceito de que a advocacia pública recorre muito e é a principal responsável pela eternização dos processos, quando aludem a um suposto dever de sempre recorrer, exceto se calcados os advogados públicos em disposição de lei ou em “pareceres de órgãos superiores”.
No âmbito da AGU há um certo esforço para a aprovação de súmulas internas e orientações normativas que venham a autorizar a não interposição de recursos em situações particularizadas. A autorização para não recorrer dispensa apenas o advogado do ônus de fundamentar de modo mais robusto a falta de recurso. Mas o curioso é que essas súmulas e orientações normativas acabam gerando um efeito pernicioso: cria-se a a impressão em parcela considerável de colegas de que existiria um dever geral de recorrer sempre e sempre nos casos não tratados nas autorizações de dispensa. Dessa inconsistente ideia padece o artigo “O ‘A’ da coisa: a identidade entre A-GU e a advocacia privada”.
Não existe esse dever de recorrer aprioristicamente. Nenhuma norma jurídica estipula que o advogado deve sempre recorrer. Idealmente, recorre-se quando há espaço para recurso; e não se recorre quando não há espaço para recurso. Tudo depende das particularidades de cada caso.
Não se sustenta que o advogado público federal possa, da cabeça dele, só porque simpatizou com o pedido da contraparte, “matar no peito” as causas pendentes contra o poder público. Não se sugere nada disso, mas se reconhece que há um terreno amplíssimo para não apresentação de recursos quando em jogo questões meramente processuais, como essa que relatamos. Entretanto, em razão de preconceitos e crenças infundadas, recursos descabidos continuam sendo produzidos em quantidades industriais, e estimulados com a propagação da lenda de que existiria esse dever de recorrer.
Enfim, a AGU é uma instituição relativamente jovem, fruto da convergência de distintas trajetórias ou afluentes da advocacia pública, como um único e potente rio. É natural que ainda hoje, persistam confusões sobre os princípios que a estruturam e orientam a atuação de seus membros. Daí a importância do debate e da reflexão, essenciais para que eventuais descaminhos sejam corrigidos. O “A” da AGU, elemento central de seu conceito, não pode denotar outra coisa senão a independência técnica de que se reveste a atuação de qualquer advogado, balizada, por sua vez, pelo caráter público dos interesses que lhe são confiados.
*Pablo Bezerra Luciano é bacharel em Direito pela Universidade Estadual da Paraíba (UEBP) e Procurador do Banco Central do Brasil. Foi Presidente da Associação Nacional dos Procuradores do Banco Central do Brasil (APBC) e membro suplente do Conselho Superior da Advocacia-Geral da União (CSAGU).
**Lademir Gomes da Rocha é Doutor em Direito pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e Procurador do Banco Central do Brasil. É o atual Presidente da Associação Nacional dos Advogados Públicos Federais (ANAFE).
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