Grandes ideias e movimentos políticos auferem seu sucesso, ao menos em parte, pelo seu caráter multifacetado e, podemos dizer, ambíguo. A liberdade, com seu inestimável valor intrínseco, é uma dessas ideias.
Se em um período já clássico da formação do liberalismo e dos movimentos trabalhistas no século 19 ambas as expressões, “Liberdade e Igualdade”, colocavam-se como palavras de ordem de movimentos conservadores e revolucionários, no Brasil de hoje a defesa da liberdade retrocede ao se ver usada e abusada por movimentos reacionários e, pasmemo-nos, autoritários – em clara contradição com a palavra e o sonho que fingem ou, se houver boa-fé, equivocam-se em reclamar para si.
No Brasil atual o bolsonarismo torna absoluto o sentido da liberdade e assim constrói um fetiche e uma caricatura, pois ignora, por má-fé ou ignorância, o seu sentido real em sociedades complexas e seu encaixe em outros valores também estruturais do mundo em que vivemos.
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Thomas Hobbes definiu a liberdade humana em contexto natural da forma mais radical. Para o pensador inglês do século 17, a liberdade mais completa é aquela que lança o ser humano a uma vida miserável. Livres em absoluto podemos dispor de tudo que nos aprouver, inclusive as posses e vida de outrem. O homem lobo do homem hobbesiano é aquele que pode matar o semelhante e por consequência também ser morto por ele. Daí a aproximação entre liberdade absoluta e miséria, e a decorrente necessidade de se dar limites às ações em sociedade por meio da constituição do Estado. A lição faz-se clara: liberdade exige limites.
Norberto Bobbio, no seu sábio “Direita e Esquerda”, agrega uma dimensão central ao debate liberdade versus igualdade.
“É verdade que a igualdade tem por efeito uma limitação da liberdade tanto do rico quanto do pobre, mas com a seguinte diferença: o rico perde uma liberdade usufruída efetivamente, o pobre perde uma liberdade potencial”.
PublicidadeEm outras palavras, Bobbio mostra como o discurso unilateral da liberdade torna-se uma peça de retórica ideológica se desconectada das outras dimensões da vida. No caso a possibilidade potencial de exercer a Liberdade, a qual decorre das competências socioeconômicas e culturais dos cidadãos.
Tamanha é a importância da Liberdade, e também perigosamente danosa sua primazia absoluta, que a Revolução Francesa compreendeu de forma precursora que as forças antitéticas da liberdade e da igualdade só alcançariam uma síntese socialmente frutífera em presença da fraternidade, a predisposição moral ao cuidado com o semelhante e ao exercício da autocontenção em casos necessários.
Assim, voltemos ao Brasil e perscrutemos o uso e o abuso que a ideia de liberdade vem sofrendo.
Movimentos bolsonarista insurgem-se contra o STF alegando que liberdade – de expressão, associação, porte de armas e outras – estaria sob ataque do Judiciário, mesmo quando tal liberdade serve à propagação de mentiras, campanhas difamatórias e ataques contra o semelhante e instituições democráticas (quando inconstitucionais, para sintetizar).
Ouvimos um uivo hobbesiano ressoando. Manifestações funestas como essas surgem em vários lugares além das redes sociais, como por exemplo foi a nota oficial da Federação das Indústrias de Minas Gerais e num enorme outdoor na Esplanada dos Ministérios que, a pretexto de saudar a Independência Nacional, alegava que “Soberania é Liberdade”.
Sim, a liberdade deve ser defendida sempre. Contudo, como qualquer fenômeno em sociedades complexas, deve ser avaliada criteriosamente e sopesada diante de outros valores fundamentais. Nossos defensores da liberdade, como dito anteriormente, ou agem de má fé ou, se de boa-fé, incorrem em erro.
Em parte do movimento encontramos os libertários que desejam submeter à mesma concorrência e a similar embate todos os cidadãos de um país estruturalmente desigual em termos de renda, educação, moradia, acesso a serviços públicos etc. Como disse Bobbio, algumas liberdades serão usadas apenas pelos mais favorecidos, inócuas e de fato opressivas para os mais necessitados.
Em outra parte, personagens autoritários adoçam a boca da massa de manobra a fim de que ela solape o equilíbrio entre os poderes e a institucionalidade que garante o usufruto verdadeiro da liberdade. Trata-se de um projeto autoritário em que o primeiro movimento é dizer que tudo que temos serve ao maligno. Se a massa viesse a efetivar o que lhe inspiram seus tutores, o passo seguinte seria a supressão de garantias e direitos, pois o verdadeiro inspirador do que temos hoje no Brasil não são Von Mises, Stuart Mill, Antonio Paim, Roberto Campos e outros de sua valiosa espécie, mas sim caudilhos como Chavez e o ancestral autoritarismo latino-americano. A massa que clama selvagemente por liberdade ataca perigosamente a si mesma e cultua um fetiche infantil.
Sociedades modernas, complexas, apenas prosperam e alcançam suas potencialidades se livres, e a experiência histórica demonstra que liberdade só se exerce efetivamente com divisão de poderes, Judiciário independente, sociedade esclarecida e estabilidade institucional. Brandir a liberdade como bandeira de um movimento reacionário e autoritário é uma patologia que se cura com firmeza institucional imediata e um longo e tenaz processo de educação cívica.
Defender a liberdade de forma verdadeira exige defender as instituições que a garantem e atuação dentro das linhas de civilidade que traçou a Constituição Cidadã.
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