Em 1920 Ray Bradbury escreveu Farenheit 451, romance distópico, ambientado numa sociedade do futuro onde tudo era proibido: livros, opiniões e pensamento crítico. 451 é a temperatura em graus Farenheit em que o papel entra em combustão. Corresponde a 233 graus Celsius. No romance, a missão dos bombeiros era queimar livros.
Se a possibilidade da destruição de obras literárias já aparecia num romance de ficção científica há quase um século, o que dizer dos dias atuais, em que a criação artística, o pensamento crítico, a opinião própria e a liberdade de expressão vêm sendo impiedosamente dinamitados pelos pontapés da intolerância? O futuro real também seria distópico?
Alguns exemplos: a exposição Queermuseu foi cancelada em Porto Alegre após protesto do Movimento Brasil Livre (que de livre não tem xongas, pois apoia precisamente a castração da liberdade, e seu líder, Kim Kataguiri, é o melhor representante da vanguarda do atraso); o quadro Pedofilia, de Alessandra Cunha (que denuncia o crime que dá nome à obra) foi apreendido em Campo Grande sob a acusação de incentivar… a pedofilia!; e a performance La Bête, de Wagner Schwartz está sendo investigada pelo Ministério Público de São Paulo. Nela, os visitantes podem tocar o corpo nu de um homem. Uma criança, que foi à performance conduzida pelos próprios pais, tocou o braço do cara pelado. A família não viu nada demais. Muito menos pedofilia. Mas o mundo veio abaixo.
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Arte moderna = arte degenerada
Chagall, Kandisnski, Munch, Klee, Mondrian e o brasileiro Lasar Segall foram banidos das exposições em território alemão logo que Hitler assumiu, em 1933, sob a acusação de que praticavam “arte degenerada” – denominação dada à arte moderna. Ainda outro dia, em 2001, o Talebã destruiu estátuas no Afeganistão, bombardeou a maior imagem de Buda e transformou museus e a cidade milenar de Palmira em pó. Alegação: as obras estimulariam a adoração de imagens. Aqui na capital de Pindorama, foram depredadas e incendiadas estátuas de orixás do baiano Tatti Moreno, às margens do Lago Paranoá. No Rio, traficantes obrigaram fiéis a destruir objetos do candomblé aos gritos de “Em nome de Jesus, porra!”
A burrice e a ignorância, primas-irmãs da intolerância, jogaram tanta titica no ventilador que, apesar da gravidade dos atos, tem hora que não dá pra segurar o riso. Na ditadura militar, ouvi relatos de professores da UnB que tiveram suas casas invadidas e romances como “O Vermelho e o Negro”, de Sthendal foram apreendidos apenas porque a cor vermelha é associada ao comunismo. Livros sobre arte cubista foram parar nas delegacias, por suposta apologia ao regime cubano. Antes, obras de José Lins do Rego e Jorge Amado arderam na fogueira do cretinismo, durante o Estado Novo de Vargas. PQP! Ou seja: Por qual propósito?
As neo-serpentes já chocaram seus ovos
É bom lembrar aos neo-censores que o nu existe nas artes desde que um neandertal achou um pigmento e pintou alguma coisa numa pedra. Na Serra da Capivara, sul do Piauí, há dezenas de cenas de sexo – sexo selvagem da melhor qualidade! – desenhadas há milhares de anos nos paredões e cavernas. Michelângelo e Donatello são responsáveis por duas obras-primas: representações escultóricas de Davi nu. Sem falar n’O Beijo e n’O Pensador (ambos de Rodin), e mais a Vênus de Milo e Hermes e Dionísio Menino (de autoria desconhecida). Todos nus.
Na Grécia antiga o nu na arte não chocava. Ah, sim. Até hoje nossos índios andam nus por aí. Alguns milhares de anos depois, nisto que insistimos em chamar de civilização, o nu provoca fechamento de exposições e discursos enfurecidos nas tribunas parlamentares.
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A onda de moralismo asqueroso vem associada ao que há de pior no autoritarismo político, no puritanismo hipócrita e no fanatismo religioso. Moralismo – patologia Conservadorismo em todas as áreas: na política, na religião, na liberdade de expressão, no avanço científico, no combate ao racismo, à homofobia, à misoginia, à pedofilia etc. Numa palavra: estamos em marcha-à-ré ladeira abaixo. Isto num momento em que se estimulam candidaturas que aplaudem ações de intolerância e os demais candidatos se calam pra não perder votos.
A tentação totalitária está fazendo cócegas no eleitorado. Ainda ontem vi no gramado em frente ao Congresso um grupo de manifestantes com bandeiras do Brasil (“o patriotismo é o último refúgio dos canalhas”) e faixas pregando a intervenção militar. Bergman tem um filme famoso sobre a república de Weimer, que antecedeu a ascensão do nazismo, chamado “O ovo da serpente”.
Numa escala de 1 a 10, o número de pessoas que apoiam atitudes autoritárias é de 8,1, segundo pesquisa do Fórum Brasileiro de Segurança Pública. Ou seja: as cobras venenosas já chocaram as neo-serpentes do nazifascismo. Elas já estão bem taludinhas e andam por aí de cabeça erguida. Têm nome, sobrenome e mandato parlamentar.
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