A Fundação Getúlio Vargas (FGV) divulgou, no início do mês de abril, que o número de brasileiros pobres saltou de 9,5 milhões em agosto de 2020 para mais de 27 milhões em fevereiro de 2021. Segundo o economista Marcelo Nery, da FGV Social, “se a gente comparar a situação de março de 2021, sem auxílio emergencial, é o pior nível de pobreza de toda a série histórica que começa em 2012. E o que é impressionante é que saiu do melhor nível, com auxílio emergencial pleno, para o pior nível”.
A razão imediata para o impressionante crescimento dos níveis de pobreza no Brasil nos últimos seis meses está expressamente apontada no comentário acima transcrito: o fim do pagamento do auxílio emergencial. Esse auxílio emergencial, no valor de R$ 600 mensais para cada trabalhador, em certas condições, foi estabelecido pela Lei n. 13.982, de 2 de abril de 2020. Não custa lembrar que a proposta inicial do governo Bolsonaro apontava para o valor de R$ 200 mensais.
O aspecto mais estarrecedor da revelação da FGV consiste no fato de que a percepção mensal do valor de R$ 600 é capaz de retirar um brasileiro da condição de pobreza. Assim, não há como negar que são monumentais as carências materiais, no plano elementar da subsistência, de numerosa parcela da população brasileira.
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Essa questão lembra a Lei 10.835, de 8 de janeiro de 2004, que institui a renda básica de cidadania, como um benefício monetário, direito de todos os brasileiros residentes no país e estrangeiros residentes há pelo menos cinco anos no Brasil, não importando sua condição socioeconômica. Foi preciso uma decisão do STF no Mandado de Injunção (MI) n. 7.300 para que a aplicação efetiva da lei não fosse jogada no esquecimento completo e para todo o sempre.
Em contraponto, o pagamento bilionário do serviço da dívida pública, já petrificado na Constituição (art. 166, parágrafo terceiro, inciso II, alínea “b”), não é esquecido. A Emenda Constitucional n. 95, de 15 de dezembro de 2016, que instituiu o Novo Regime Fiscal por 20 anos, criou um “teto de gastos” para as despesas primárias (relacionadas com ações sociais do governo) e “esqueceu” de impor limites para as despesas financeiras, como o pagamento do serviço da dívida pública. Na Emenda Constitucional n. 106, de 7 de maio de 2020, que instituiu um regime fiscal extraordinário, o artigo sexto resguarda o refinanciamento da dívida mobiliária e o pagamento de seus juros e encargos.
Importa destacar que não faltam recursos (riqueza produzida) para combater a pobreza e a marginalização social, objetivo da República Federativa do Brasil tal como inscrito no artigo terceiro da Constituição de 1988. Com efeito, escrevi, em outubro de 2020, o texto “RECURSOS DO ‘ANDAR DE CIMA’ PARA UM PROGRAMA DE RENDA MÍNIMA“. Destaco o seguinte trecho daquele escrito:
Mudando o foco dos debates, aponto uma fonte de financiamento que atinge diretamente o ‘andar de cima’. Trata-se de aumentar a tributação dos juros recebidos pelos bancos nas suas operações de crédito (as mais diversas formas de empréstimos concedidos a pessoas físicas e jurídicas).
Segundo dados do Banco Central do Brasil (BCB), o saldo das operações de crédito do Sistema Financeiro Nacional (SFN) alcançou R$3,7 trilhões em agosto de 2020, sendo R$ 1,6 trilhão de pessoas jurídicas e R$2,1 trilhões de pessoas físicas. O Indicador de Custo do Crédito (ICC), medidor do custo médio de todo o crédito do SFN, apontou para 17,9% ao ano no mesmo mês de agosto.
Percebe-se, com extrema facilidade, que centenas de bilhões de reais são pagos anualmente por pessoas físicas e empresas na forma de juros bancários no Brasil. Ninguém se iluda. O devedor de bancos no Brasil não paga aquela taxa Selic baixinha fixada pelo BCB. Esse, apesar de ser um dos principais problemas socioeconômicos brasileiros, inclusive por deprimir o consumo de forma significativa, raramente é objeto de alguma atenção da imprensa ou dos últimos governos, incluído o atual.
A proposta específica, a título de provocação para o debate, reclamando os estudos e ajustes pertinentes, envolve a utilização dos recursos do Programa Bolsa Família (a ser extinto) e os recursos advindos do aumento da tributação dos bancos, como antes posto. Com uma massa de recursos da ordem de R$ 100 bilhões por ano, seria possível viabilizar uma renda básica (com mecanismos inteligentes de ingresso e saída do programa) na casa dos R$ 300 mensais para cerca de 30 milhões de beneficiários. Seria, ademais, um importante passo para a implementação da esquecida ‘renda básica de cidadania’, definida pela Lei n. 10.835, de 2004.
O Brasil não se resume ao superavit primário, à corrupção, aos “privilégios” do funcionalismo público (embora existam aqueles a serem suprimidos) e aos “demoníacos” gastos previdenciários, como afirmam os discursos do Governo, da grande imprensa e do mercado, em especial o financeiro.
A imensa maioria da sociedade brasileira nem imagina o que (e quanto) é “escondido” dela em termos de expedientes institucionalizados de transferência de riqueza (não se trata de corrupção em sentido estrito) da imensa maioria da população para um punhado de “escolhidos”. Esses expedientes (bilionários e trilionários) envolvem, entre outros: a) remessas para paraísos fiscais; b) pagamento do serviço da dívida pública; c) formação de reservas monetárias; d) sonegação; e) benefícios tributários; f) subsídios; g) operações compromissadas e h) swap cambial.
A corrupção é um dos grandes problemas do Brasil, mas não é o maior deles. Nossa maior mazela reside nas profundas desigualdades sociais e na extrema pobreza decorrente. Também deve ser assinalado que não é a corrupção que produz as desigualdades socioeconômicas e a pobreza inaceitável, como a sua pior faceta. Como foi destacado, a pobreza decorre basicamente da falta de renda suficiente, ao ponto de que a não percepção de R$ 600 mensais triplica o número de brasileiros abaixo da linha de pobreza.
A corrupção no setor público afeta o emprego de recursos nos serviços públicos fundamentais. A pobreza nos níveis destacados está diretamente relacionada com o capitalismo selvagem praticado no Brasil. Um capitalismo que subtrai, pela forma como funciona, um patamar mínimo de renda para a maioria da população brasileira.
Sintomaticamente, o boletim de uma corretora de valores mostra como os donos do mercado desprezam os pobres e as iniciativas, mesmo limitadas, de ampará-los. Afirmou a publicação: “Depois de uma aparente melhora nas últimas semanas, que evidentemente se refletiu no aumento do apetite por risco, voltamos a atentar aos ruídos fiscais, que surgiram sob os holofotes com as notícias de que o governo federal prorrogaria as parcelas do auxílio emergencial em dois meses, até setembro, nos mesmos valores de R$ 150 a R$ 375 e com igual alcance em termos de público (gasto total chegaria a R$ 18 bilhões). (…) De qualquer forma, o mercado não gostou nada e novas informações nesse sentido terão impacto sobre a performance do dia” (Fonte: Vitreo).
É curioso como no âmbito da polarização política em curso existem um combate barulhento ao comunismo e ao socialismo (quem é contra o governo federal é logo tachado de comunista. Até o técnico da seleção brasileira de futebol foi assim identificado!!!). Investir contra esses fantasmas, que não estão postos como dado da realidade política brasileira, é uma engenhosa forma de manter a essência do capitalismo selvagem brasileiro e, assim, não reverter os profundos males socioeconômicos por ele gerados e mantidos.
Existe um paradoxo na manutenção desse estado de coisas. É justamente o fato de que quem mais sofre com o modelo socioeconômico instalado no Brasil mantém o mesmo na maior parte das suas escolhas eleitorais. Obviamente, não são decisões conscientes na grande maioria dos casos. Essas “preferências” resultam diretamente: a) de um quadro de baixa educação geral, em especial educação política e b) do perverso papel desempenhado pela grande imprensa, notadamente: b.1) pela prática de esconder aspectos cruciais da realidade; b.2) por supervalorizar partes bem escolhidas da realidade e b.3) por interditar o debate político com viés democrático e plural.
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