Minhas lembranças de infância sempre se ligaram a muitos encontros plenos de alegria, fé e samba. As festas em casa de minha Tia Alice, com Dondon e Santinha, induziram meus pais a construírem, em 1978, uma casinha num terreno em Barra de Maricá, para a curtição de toda a família, que compareceu em peso na inauguração em 1979, com muita música e muita alegria. Fiz desta casa meu lugar de encontro espiritual, construindo um cantinho para meus orixás e para reuniões de família.
Meu primo querido Nelson Tadeu de Oliveira era filho de minha tia Dulce e é um resultado da fé. Minha tia tinha como sonho maior ser mãe. Perdeu vários bebês prematuros e prometeu a São Judas Tadeu que se conseguisse levar uma gravidez até o final iria colocar o nome Tadeu no bebê. Assim, quando conseguiu seu intento batizou o filho com o nome do pai e do santo. Desta forma, frequentar a igreja de São Judas Tadeu todos os anos para atender uma promessa, se tornou rotina na vida de meu primo e sua mãe.
Nelsinho Bigode, como ficou conhecido, era para mim um verdadeiro irmão. Caminhamos juntos até 2018, quando nos deixou em Guaratiba, onde pousou, após atuar como presidente da escola de samba mirim Aprendizes do Salgueiro e de cantar e tocar nas noites do Rio de Janeiro. Arrendou o Bar e Restaurante Redondo, nas areias da praia lá em Guaratiba, bem perto de minha casa, unindo suas grandes paixões na vida: família, música e culinária.
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A partir dos anos 1980 passar o final de semana no bairro Guaratiba em Maricá, frequentar o Redondo, curtindo os amigos e a família se tornou um programa obrigatório. Lá reeditamos nossa infância festiva, contando sempre com nossa família e amigos sambistas. Nelsinho era de Ogum, orixá iorubá masculino, figura representativa do guerreiro, muito cultuado na comunidade preta especialmente por estar associado à luta, à conquista, sendo figura do astral que, depois de Exu – movimento, está mais próxima dos seres humanos.
Ogum guerreiro, que guarda o segredo do ferro, sempre teve a função de realizar no astral as guerras travadas pelos humanos para vencer com sua espada nossa luta cotidiana. Foi uma das figuras do candomblé incorporada por outros cultos, notadamente pela umbanda, culto seguido por Nelsinho, onde é representado por São Jorge ou Santo Antônio, tradicionais guerreiros dos mitos católicos, também lutadores, destemidos e plenos de iniciativas.
No início de 2000, por conta de uma promessa de Nelsinho em seu terreiro pelo atendimento a seu filho Nelson Alexandre, passamos a oferecer uma feijoada para Ogum no dia 23 de abril, quando se festeja São Jorge, o Santo Guerreiro, protetor das mulheres e das demandas. Nesta ocasião, Nelsinho não estava mais com o Bar Redondo e combinamos com meu marido Fernando Jorge, outro fervoroso admirador do santo, que iriamos fazer a feijoada em minha casa, já que o meu quintal era amplo e acolhedor.
PublicidadeAlguns amigos lá do bairro de Guaratiba, ligados às religiões de matriz africana, se juntaram a nós e participaram da segunda festa, onde fizemos três quilos de feijão. Muitos outros foram chegando e Nelson resolveu fazer a feijoada no fogão de lenha, seguindo nossos rituais da comunidade terreiro. Meu marido lembrou que poderíamos fazer uma camiseta e junto com Nelsinho e o filho Nelson Alexandre desenharam um modelo com a imagem de São Jorge e frases da oração.
Com o passar dos anos, amigos do Nelson, como Carlinhos Senza, cantor e compositor, além do meu amigo Nêgo, puxador de sambas e de meu compadre Ronaldinho, mestre-sala do Salgueiro vinham do Rio para participar da festa. Em 2015, resolveram criar um grupo na internet para organizar uma festa maior e assim surgiram os Falangeiros de São Jorge, constituído de amigos e familiares. Quando demos conta, a família extensiva estava grande demais, exigindo maiores reservas de verbas para o encontro.
Por sugestão de meu marido Fernando Jorge, conseguimos a adesão de Chiquinho do Babado da Folia, Nelsinho trouxe seus amigos e vizinhos de Guaratiba, eu contei com o apoio de Selminha Sorriso da Beija-flor de Nilópolis e de muito amigos. Começamos a cozinhar 30 quilos de feijão nas madrugadas de 22 para 23, chegando a ter panelões com 40 quilos.
Os amigos vindos do Rio como Yara Will e seu marido Jorge, minha comadre Mary, Paulinha minha afilhada e seu marido e muitos outros ajudavam fazendo doações de feijão, carnes, couve, cerveja, mas sempre Fernando Jorge, eu, Nelson Alexandre e Nelsinho íamos em Inoã comprar o básico para a festa.Contamos sempre com a colaboração das mulheres da família: Márcia, mulher do Nelson, Angelina, esposa do filho Nelson Alexandre, Dona Regina, mãe de meu marido, a querida Zezé, madrinha do Fernandinho, Jorginho de Guaratiba, que pintava minha casa e ajudava a servir, sem esquecer do Babalaô Marco Aurélio que nos cedeu muitas cervejas e do Álvaro que cuidava da iluminação, sempre pronto a ajudar na estrutura geral.
Os filhos de Fernando Jorge, a filha de Nelson, os filhos de Márcia, meu filho e netos, todos participaram. Impossível dizer o nome de todos e todas que nos apoiaram durante 18 anos. Enfim, amigos e comunidade participaram das festas na Rua 27, Quadra 37, Lote 29, Guaratiba, Maricá, durante 15 anos. Muitos tocaram, outros cantaram, outros curtiram as inúmeras melodias feitas em homenagem a São Jorge e a Ogum que tivemos o cuidado de gravar e apresentar, mas todos estavam com sua fé, seja no santo católico ou no orixá nagô, buscando resolver as dificuldades do dia a dia.
Maricá tem inúmeros grupos que homenageiam São Jorge, sendo que no dia 23 de abril contávamos com alvorada com fogos às 6h, encontro para café comunitário em casa de amigos, após uma noite inteira fazendo feijoada na lenha para cerca de quatrocentas pessoas. As camisetas eram distribuídas gratuitamente, conseguimos oferecer as bebidas e, logicamente, muito samba e muita fé. Às 18h, tínhamos uma roda de orações sob meu comando, onde saudávamos São Jorge e Ogum guerreiro, agradecendo a todos pela presença e pela energia boa que criamos.
Consolidamos nossa tribo, com laços de amizade e de solidariedade, provando que podemos juntos vencer os problemas e as dificuldades.Não posso deixar de mencionar os amigos do universo do samba, que prestam muitas homenagens neste dia 23 de abril, apontado na história como sendo da morte de São Jorge em 303 a mando do imperador Diocleciano. Inúmeros são os sambas que tratam do tema. Jorge Bem fez letra e música intitulada Jorge da Capadócia, que exprime bem o sentimento da comunidade preta, por conta da falta oportunidades e de assistência em que vive:
“Jorge sentou praça na cavalaria, eu estou feliz porque eu também sou da sua companhia, eu estou vestido com as roupas e as armas de Jorge, para que meus inimigos tenham pés e não me alcancem.”
As desigualdades gritantes da sociedade brasileira cada vez mais expostas nesta pandemia nos fazem buscar as proteções de nossa fé, já que não temos vacinas suficientes e nem atendimento hospitalar adequado, justificando o canto de Zeca Pagodinho com a música de Pecê Ribeiro:
“Vou acender velas para São Jorge. A ele eu quero agradecer. E vou plantar comigo ninguém pode. Para que o Mal não possa então vencer. Olho grande em mim não pega. Não pega em quem tem fé no coração. Ogum com sua espada encarnada me dá sempre proteção. Quem vai pela boa estrada no fim dessa caminhada encontra em Deus perdão.”
Nada mais pertinente do que rezar para Ogum e São Jorge neste momento de tantas perdas, já que o samba é o canto e a dança da reza, pois nos coloca em sintonia com o cosmos em busca de equilíbrio. Mais uma vez uso a arte de Zeca Pagodinho e Jorge Benjor para enfrentar estes momentos difíceis que estamos vivendo:
“Eu sou descendente Zulu
Sou um soldado de Ogum
Devoto dessa imensa legião de Jorge
Eu sincretizado na fé
Sou carregado de axé
E protegido por um cavaleiro nobre
Sim vou na igreja festejar meu protetor
E agradecer por ser mais um vencedor
Nas lutas nas batalhas
Eu canto pra Ogum
Ogum
Um guerreiro valente que cuida da gente que sofre demais.
Ogum”
Homenagear hoje meu primo Nelsinho, que tinha fé na vida e muita alegria de viver é reafirmar a importância de nossa família e dos amigos, apoiada nos que já se foram mas continuam presentes em nossas emoções e pensamentos, forjando um agora que nos leve a um mar de esperança que traga bonança para o nosso amanhã.
Desde 2018 não consigo ir para Maricá, mas preciso voltar ao meu lugar, no caminho de Ogum e Iansã. Lá tem muita energia boa, que nos permite muita ginga no andar e lembranças de momentos carregados de axé. Salve Jorge! Salve Ogum! Salve Nelson Tadeu!
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