O artigo que publicamos hoje, apesar de se distanciar dos fatos corriqueiros do dia a dia da política e caminhar em direção a uma reflexão mais acadêmica, traz alguns elementos importantes para o entendimento e compreensão do funcionamento da atividade política e do exercício do poder, à luz do realismo de Nicolau Maquiavel.
Maquiavel atuou como conselheiro de vários líderes políticos de sua época. Promoveu, com base nas suas pesquisas e experiências, uma verdadeira revolução na forma de pensar o fenômeno da política como ela é e de perceber sutilmente como se processam as suas relações, nem sempre recheadas de pureza.
Segundo Almeida Filho e Barros (2008, p. 56)[1], Maquiavel foi “o primeiro cientista político moderno”. Isto porque, com sua maneira realista de observar os fenômenos políticos, termina por desvelar a “face cruel do poder”. Ao concentrar seus estudos no dia a dia dos operadores da política e da sua dinâmica própria, chegou a uma conclusão que se tornou um divisor de águas: a política é obra humana, portando não divina. Tal descoberta fez dele um herege, com direito à inclusão de seus estudos no Índex Prohibitorum (índice dos livros proibidos) da Igreja Católica.
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A política, exercida pelo homem – e não por Deus – é dinâmica e sua prática constitui-se num jogo que possui regras próprias e segue uma lógica racional, não pertencente à esfera da ética, que é baseada nas consciências individuais, fundamentadas em preceitos morais ou idealismos vigentes em cada época específica. Aos colegas cientistas políticos, fica a dica: “Não cabe ao estudioso a idealização de governos justos, mas a investigação fria da política como sendo o estudo dos conflitos pelo poder”. (Barros, 2014, p. 37-38).
Maquiavel decifrou a fórmula da “Energia Nuclear do Poder”. A título de comparação, poderíamos dizer que assim como a energia nuclear pode ser usada para fins nobres produzindo energia que ilumine nações inteiras a custo baixo, ou destruidores, gerando uma bomba atômica, a forma de utilização da Energia Nuclear do Poder pode construir, conquistar, formar e sustentar Estados-Nação, Repúblicas e Reinos prósperos ou leva-los à ruína completa.
Com tudo isso e diante de suas descobertas iluminadoras para uns e constrangedora para outros, tornou-se uma figura polêmica, sendo admirado por uns e odiado por outros – como pela igreja católica à época, apesar de hoje estar sepultado justamente em um dos templos desta igreja, em Florença/Itália.
PublicidadeAo longo do tempo, foi gestado o adjetivo que muitos utilizam na contemporaneidade quando querem se referir a alguém mal e impiedoso: “maquiavélico”. De acordo com Jesus Junior[2] (2014, p. 102):
O adjetivo maquiavélico passou a tomar proporções pejorativas nas relações interpessoais. Apontar alguém com essa alcunha pode ser considerado ofensivo. Mas os conceitos adquirem representações distintas dentro de diferentes contextos políticos, culturais e econômicos. Ser maquiavélico no tempo corrente não significa o mesmo que aplicar a doutrina de Maquiavel em meados do século XVI, o período no qual o historiador italiano busca aplicar seus conselhos aos príncipes recém-chegados ao poder.
Maquiavel, que de maquiavélico no sentido popular do termo, não tinha nada, tem o seu pensamento deturpado até os dias atuais, mais de quinhentos anos depois. De acordo com Barros (2008, p. 68): “…existem dois sentidos para o termo maquiavelismo, um calcado no senso comum e nas distorções que o pensamento de Maquiavel sofreu ao longo dos séculos, e outro que se refere à sua real doutrina, a Razão de Estado”.
Nesta linha de raciocínio, Barros apud Megale[3] (2008, p. 68-69), chamou à essa distinção de “Maquiavelismo Político ou científico e maquiavelismo vulgar. Nas duas versões é sempre uma estratégia. A diferença consiste na qualidade do resultado que se busca. Se o escopo desejado é a satisfação de um interesse privado, ou se o que se pretende é realmente a defesa do Estado”.
Apesar de ser atribuída a Maquiavel a frase: “os fins justificam os meios”, o próprio nunca a pronunciou em suas obras. Trata-se de outra interpretação por vezes deturpada. O que ele defendia na verdade, baseado na ética do resultado era que em alguns casos, a visão racional e realista da política sobrepõe-se à postura moralista, quando estão em jogo os interesses do Estado, da instituição que se controla, ou, enfim, os interesses da coletividade, também compreendidas como Razões de Estado.
A ética da política, por tanto, obedece à ética da responsabilidade; à ética do Estado. Para Maquiavel, saber usar a força do poder, que se dá no exercício da política, é a chave para o sucesso do Príncipe – ou gestor público nos dias de hoje – também condicionado ao que ele chama de Virtù (qualidades próprias do governante) e à Fortuna (ou sorte, no implemento de suas ações).
O conceito de Razão de Estado, reconhecidamente por parte de diversos autores, tem origem nos princípios de Maquiavel em O Príncipe. Como exemplo, Norberto Bobbio (1986, p. 1067)[4] destaca que é possível:
Descobrir na história do pensamento político numerosas antecipações parciais, às vezes bastante agudas, de tal teoria, mas está fora de dúvida que é só com Maquiavel que se registra um salto qualitativo capaz de constituir o começo de uma nova tradição de pensamento.
Jesus Junior (2014, p. 108) argumenta que tal conceito não está presente, explicitamente, na obra do florentino, mas é possível notar as origens intelectuais do conceito nas prescrições que Maquiavel direcionou aos recém-chegados ao poder, ganhando sentido com a formação do Estado-Nação territorial e que, por Razão de Estado
Entende-se uma autonomia da política em relação às demais esferas de atuação humana, como a ética e a religião. O príncipe, ao conduzir os negócios de Estado, é o próprio Estado, transfigura-se. Desse modo, a ética do príncipe é a Razão de Estado.
Barros (2008, p. 69) ao evocar o pensamento de Gautier-Vignal afirma que “A Razão de Estado é aquela necessidade que tem quem governa, de tomar as medidas próprias para assegurar a continuidade do poder, nos períodos de crise, a salvação do Estado”. De acordo com Gonçalves e Romano da Silva citando Maquiavel (2011, p. 08), “é necessário, a um príncipe que queira se manter [no governo], aprender a poder não ser bom e usar ou não da bondade, segundo a necessidade”. E, para Januário Megale (1993, p. 59), a Razão de Estado “é o princípio pelo qual a soberania de um Estado não pode ser lesada e pelo qual o governante não pode tergiversar entre medidas cruéis ou não para garantir a soberania da nação e o bem-estar da população.[5]” Ainda sobre a temática, o teórico alemão Friedrich Meinecker (1957, p. 10) pontua que:
A razão de Estado é o princípio fundamental de condução nacional, a primeira Lei de Movimento do Estado. Ela diz ao estadista o que ele deve fazer para preservar a saúde e a força do Estado. O Estado é uma estrutura orgânica cujo poder total apenas pode ser mantido ao se permitir, de alguma forma, que ele continue a crescer; a razão de Estado indica tanto o caminho quanto a meta para tal crescimento.
Partindo desses argumentos, poderíamos perguntar: tal interpretação significaria dizer que os fins justificariam qualquer meio e, sendo assim, não haveria limite à Razão de Estado? A corrupção, circunscrita à apropriação ilegal de recursos financeiros ou mesmo a relação “imoral” entre os poderes legislativo e executivo, praticada em nome da “governabilidade”, justificar-se-iam como Razão de Estado?
Para colocar lenha na fogueira deste debate acadêmico-político-filosófico, considerando a teoria de Maquiavel em um olhar sobre o Brasil, pergunto: os fins justificam a corrupção? Auxiliando a abordagem à essa questão, citamos um trecho da fala de Marilena Chaui (2000, p.397), para quem a lógica da política:
Nada tem a ver com as virtudes éticas em sua vida privada. O que poderia ser imoral do ponto de vista da ética privada, pode ser virtù na política. O ethos político e o ethos moral são diferentes e não há fraqueza maior do que o moralismo que mascara a lógica real do poder.
Levando em conta a visão realista de Maquiavel sobre a política, esta pode ser entendida como sua “regra metodológica: ver e examinar a realidade tal como ela é e não como se gostaria que ela fosse” (SADEK, 2000, p. 17). Talvez, em sintonia com as questões que levantamos no tópico anterior, esteja a afirmação de Barros (2008, p. 60):
Para Maquiavel o que interessa é o mundo real… talvez por isso o seu pensamento sofra tantas distorções. Isto é, a demonstração do cosmos político, em sua realidade intrínseca, assusta aos desavisados que pensam dever ser o governante uma pessoa pura, um cristão acima de tudo. (…) pois o bom governante não é, necessariamente, aquele que tem a alma mais cândida, mas o que porá o interesse público em primeiro plano e salvaguardá-lo-á, por todos os meios, mesmo que condene o seu espírito ao inferno.
Por outro lado, tratando do mesmo assunto, SKINNER (2012, p. 79), afirma que “o começo da corrupção é equiparado à perda da Virtù”, e que a mesma – equiparada à perda do interesse pelo bem comum – pode se ocorrer de duas maneiras:
Ao perder todo o interesse pela política, tornando-se ‘preguiçoso e inapto para a realização de qualquer atividade virtuosa’. Mas, o perigo mais insidioso surge quando os cidadãos continuam ativos nos assuntos de estado, mas começam a promover suas ambições individuais ou interesses de facção em detrimento do interesse público. Maquiavel define uma proposta política corrupta como aquela ‘apresentada por homens mais interessados no que podem extrair do público do que em seu bem’; (Skinner, 2012, p. 79)
Afinal, a ética de Maquiavel poderia ser revista quando ultrapassasse, para além do jogo político, a própria estabilidade do Estado e a sua soberania? O jogo pela manutenção no poder, via exercício da política, poderia concorrer para colapsar o próprio Estado, que fundamenta a sua existência? Seria contraditório à Razão de Estado e irracional pôr em risco o próprio Estado? Qual é o pensamento de vocês a respeito?
[1] ALMEIDA FILHO, Agassiz, BARROS, Vinicius Soares de Campos. Novo manual de Ciência Política. São Paulo: Editora Malheiros, 1.ed, 2008.
[2] JESUS JUNIOR, Helvecio. Nicolau Maquiavel e seu tempo: A Razão de Estado, A arte da guerra e suas contribuições para a Ciência Política e as Relações Internacionais. Revista online Teoria e Pesquisa, 2013, vol. 23, p. 101-118. Acesso em maio de 2017. Disponível em: http://www.teoriaepesquisa.ufscar.br/index.php/tp/article/viewFile/380/258.
[3] MEGALE, Januário. O príncipe de Maquiavel: roteiro de leitura. São Paulo: editora Ática, 1993. 78 p.
[4] BOBBIO, N. Dicionário de Política. Tradução de João Ferreira. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 1986.
[5] MEGALE, Januario. O príncipe de Maquiavel. Roteiro de Leitura. São Paulo: Editora Ática, 1993.
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