Em 11 de agosto de 1827, foi promulgada a lei que criou os dois primeiros cursos jurídicos no Brasil, um em São Paulo e outro em Olinda. Desde então, a data é comemorada. Todavia, sua importância era reconhecida apenas pelos operadores do Direito.
Em 11 de agosto de 2022, quase 200 anos depois, a data passa a ter um novo significado. Na Faculdade de Direito, situada no Largo de São Francisco, na cidade de São Paulo, uma daquelas criada em 1827, foi lida a segunda versão da Carta às brasileiras e aos brasileiros.
A primeira versão da Carta foi lida pelo professor Goffredo da Silva Teles, em agosto de 1977, em plena ditatura militar, e visava o restabelecimento do Estado Democrático de Direito, o que efetivamente ocorreu alguns anos mais tarde.
A segunda carta, lida este ano, e redigida por um grupo de juristas, ex-alunos da mencionada faculdade de Direito, visa afastar as ameaças surgidas contra o Estado de Direito e contra a Democracia, e faz um voto de fé na lisura do processo eleitoral brasileiro, cujo resultado cabe ser respeitado por todos os candidatos e por todos os brasileiros e brasileiras. A carta foi subscrita por mais de um milhão de pessoas e por centenas de entidades da sociedade civil.
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Tal qual a Magna Carta que teve de ser jurada inúmeras vezes pelos Reis da Inglaterra até que seu conteúdo foi incorporado à cultura britânica e já não admite mais questionamentos; assim, também, a Constituição brasileira precisa atingir um grau de conhecimento pela população de tal forma que seu conteúdo básico, o principal, não gere mais questionamentos, pois, todos compreendam as vantagens de sua aplicação.
O Estado de Direito é uma organização social regida por um Estatuto, um documento original que estabelece os objetivos do agrupamento de pessoas, os direitos e as obrigações de seus membros e a forma de seu gerenciamento. Quem pode ser o gerente, por quanto tempo, quais as formas de fiscalização do patrimônio coletivo, e como se dá o processo de alternância no poder. Quando tratamos de um país, esse Estatuto recebe o nome de Constituição. No Brasil, temos a Constituição Federal e as Constituições Estaduais. Os municípios possuem suas leis orgânicas, mas elas já não recebem o nome de Constituição, pois, estão subordinadas às normas federais e estaduais. A Constituição costuma ser o ato jurídico de maior relevância e, portanto, não se sujeita aos demais atos normativos, os quais lhe são hierarquicamente subordinados.
A existência de constituições estaduais e federal já é uma anomalia explicada por razões históricas e tem fundamento na grande autonomia dos Estados-membros em relação à União. Nos Estados Unidos da América do Norte, de onde importamos esse aspecto do nosso sistema jurídico, os Estados-membros nasceram primeiro, já tinham suas próprias constituições quando se decidiu pela criação da União Federal. Portanto, as Constituições estaduais surgiram primeiro e reservaram para si muitos dos poderes, inclusive a competência residual, somente admitindo que a União tratasse de questões específicas que os Estados abdicaram por razões de segurança e eficiência.
O Brasil Republicano copiou e colou o modelo norte-americano, embora nossas condições históricas não fossem absolutamente as mesmas daquele país, mas não deixavam de guardar alguma semelhança. Ambos eram ex-colônias de países europeus e que haviam conquistado suas independências. Os Estados Unidos em 1776, o Brasil apenas em 1822. E aqui, o rompimento com a Monarquia dar-se-ia apenas em 15 de novembro de 1889, com a Proclamação da República. Foram as Constituições Republicanas que instituíram no Brasil o modelo norte-americano com algumas adaptações que foram aumentando ao longo dos anos. Nossa estrutura básica no que tange ao formato dos Poderes Legislativo, Executivo e Judiciário seguem o modelo estadunidense. Nosso Legislativo federal é formado pela Câmara dos Deputados e pelo Senado Federal, tal qual o deles. Nosso Poder Judiciário é dividido entre Judiciário Estadual e Judiciário Federal, da mesma forma que o deles, e a cúpula é constituída pela Suprema Corte, com ministros indicados pelo Presidente e sabatinados pelos Senadores. Também, o formato dos Executivos Federal, Estaduais e Municipais são parecidos. Essas nossas grandes semelhanças são derivadas do famoso método humano chamado copia e cola. Esse método não é prerrogativa exclusiva dos brasileiros, pois, se encontra presente em todos os lugares do globo. É assim que a humanidade vem evoluindo a milênios. Copia o que deu certo e descarta o que não funciona. Se ainda não descartou, é porque não achou algo que funcione melhor.
Por quais razões muitos países descartaram a ditadura? As democracias funcionam melhor, basta observar os países da América do Norte e da Europa Ocidental. Então, por quais motivos muitos países ainda não adotaram o Estado Democrático de Direito, mas permanecem com regimes totalitários? Suas populações ainda não puderam experimentar a democracia o suficiente.
É preciso ter em mente que na história da humanidade, os governos autoritários, despóticos, ditatoriais foram a maioria na antiguidade. Ainda existem em grande número. O poder foi conquistado pela força, e não pelo Direito. Este surgiu depois, como forma de consolidação do poder.
Um dos problemas do regime ditatorial é que ele é permanentemente instável. O ditador sempre está correndo o risco de ser assassinado. Júlio César é o exemplo clássico, mas muitos outros também o foram. A história dos imperadores romanos é emblemática, uma sequência interminável de guerras, intrigas e assassinatos. E isto não ocorreu apenas em Roma, foi replicada em muitos países.
Ou seja, numa ditadura, num regime imposto pela força, o governante precisa o tempo todo estar cuidando de sua segurança, dado que o ódio dos subalternos e a cobiça dos próximos deixa sua vida sempre em perigo.
Num Estado de Direito, e numa Democracia, o que se busca é uma paz temporária, que dure certo tempo para se dedicar a outros temas relevantes da vida, como plantar e colher, cuidar dos enfermos, enterrar os mortos, negociar as mercadorias excedentes e desenvolver novas máquinas, construir estradas e pontes, e quem sabe, se o tempo ajudar, desfrutar um pouco do Sol e da praia.
Numa Democracia, a luta pelo poder tem data certa para ocorrer, e as regras são previamente definidas. Há limites dentro dos quais o jogo do poder é disputado. No Estado de Direito, são as leis que definem o que é proibido e o que é permitido, inclusive durante as eleições.
A Democracia e o Estado de Direito ainda não conseguiram resolver todos os problemas da humanidade como fome, miséria, discriminação, violência, e muitos outros; mas permitiu que avançássemos muito com a criação de auxílio desemprego, previdência social, SUS, escolas públicas, construção de vias, praças e outros espaços públicos. Enfim, vivemos muito melhor do que nossos antepassados, e em quase todos os aspectos.
Há problemas a resolver? Não resta dúvida que muitos; mas não podemos jogar fora as conquistas do passado. O Estado de Direito e a Democracia são conquistas de nosso passado, mas precisam permanecer vivas em nosso presente.
A Carta às brasileiras e aos brasileiros visa relembrar que demos um avanço histórico com a criação da Justiça Eleitoral, um órgão independente dos partidos políticos, formado por milhares de pessoas, cujas funções são exatamente de garantir a lisura do processo eleitoral. Um processo que vem sendo aperfeiçoado a décadas e que culminou, inclusive, com a criação da urna eletrônica nacional (não é venezuelana, mas brasileira), e que deveria ser motivo de orgulho para os brasileiros, tal qual os aviões da Embraer. O Brasil é um país original, não se discute. Não temos indústria automobilística nacional, todas são estrangeiras, deixamos quebrar a Gurgel (que queria fazer carros elétricos muito antes da Tesla), mas possuímos a Embraer, uma das poucas indústrias de aviação no mundo, e genuinamente brasileira. Aliás, Santos Dumont, o pai de aviação, era brasileiro. Portanto, duvidar da capacidade inventiva dos brasileiros, embora seja esporte nacional, costuma cometer grandes equívocos.
O importante é que pesquisa recente do Datafolha registra que: “Para 75% da população, a democracia é um regime preferível a qualquer outra forma de governo” (in Opinião do Globo, p.2 edição de 20 de agosto de 2022); e os adeptos de uma ditadura não passam de 7%, segundo a mesma publicação.
Os déspotas não passam de assaltantes da população, pois, usam armas para imporem suas vontades enquanto se locupletam do patrimônio público. No Estado de Direito, as leis são construídas a partir do diálogo, na sociedade e no Parlamento. É preciso buscar consensos e isso é trabalhoso e demorado, envolve muita conversa, disposição para ouvir o outro, aquele que pensa diferente, aprender a lidar com o discórdia, e, ainda assim, construir possibilidades, desenhar caminhos e, por vezes, tomar decisões pelo voto, mas com respeito.
Debater as divergências é fundamental. A democracia admite o debate, vive do debate público de ideias e de projetos.
Parece que enfim, o brasileiro começa a perceber que a democracia importa, que o caminho pela estrada da democracia pode ter problemas, mas permite que cada um escolha o seu ritmo, faça as suas escolhas e viva a sua vida a seu modo. Isso tem preço, mas tem muito valor.
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