Jaci encontrou Oxalá e Emanuel desolados naquele iniciar de noite. Presumira que estavam tristes por saberem dos massacres do Jacarezinho e de Saudades. Não era a primeira vez em que ficavam arrasados diante das inúmeras chacinas que ocorrem impunes no Brasil. Jaci sabia que naquele momento eles pareciam reviver as cenas de Carandiru, Vigário Geral, Unaí, El Dorado do Carajá, Quintino, Lapa, Messejana ou Felisbugo. A iluminada amiga sabia da dor de seus companheiros, pois o seu próprio povo fora chacinado desde o aportar da primeira caravela europeia em sua milenar moradia. Daí ter sentido compaixão pela dor de Emanuel quando ele chorou ao perceber que a sua Igreja na Candelária não pudera abrigar e proteger os oito jovens executados no dia 23 de julho de 1993.
– Eu sei, Emanuel, que essas notícias causam perplexidades – escutou Jaci, ao se aproximar de Oxalá. – Afinal, como justificar a morte de crianças e de adolescentes que apenas iniciavam a vida? Como dizer que o futuro estampado no rosto da pessoa que amamos agora é apenas um nostálgico passado? Como não ficar triste quando escutamos as pessoas falarem que mortes em comunidades pobres não têm rostos, nomes e histórias a serem contadas?
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– Não tem mesmo como achar normal, Oxalá. É realmente impossível ficar insensível à morte que surge sem qualquer motivação lógica – concordou Jaci, abraçando, carinhosa, o seu querido orixá. – Até porque os seres humanos não têm, salvo quando creem em nossas mensagens, qualquer certeza sobre o futuro da alma que deixou prematuramente o corpo. São dúvidas e mais dúvidas a inquietar o já inconformado coração humano.
– Especialmente aqueles que Mateus chama de hipócritas, “pois se comprazem em orar em pé nas sinagogas, e às esquinas das ruas, para serem vistos pelos homens” – disse Emanuel, interrompendo o seu silêncio reflexivo. – Esses que dizem rezar para Deus e, secretamente, negam tudo que pregamos. Meu Pai sabe o que é necessário fazer quando um coração corrompido pela hipocrisia reza em vão.
– “Salvem-se desta geração corrompida” – descontraiu Oxalá, em voz impostada – Não é assim que está no “Atos dos Apóstolos”?
– Vocês lembram daquele xamã do povo Lakota que nos visitou o ano passado? – perguntou Jaci, evitando, discretamente, o debate entre seus amigos. – Ando pensando muito nele, agora que a pandemia tem causado muita dor, desespero e desesperança.
Publicidade– Claro que sim – respondeu Oxalá. – Eu gostava quando ele falava que as pessoas deveriam “viver para as gerações que ainda não nasceram”. E que Emanuel emendava com um dos seus salmos, dizendo que “o teu nome será lembrado de geração em geração”.
– Ele mesmo! Ontem, enquanto eu escutava Akuanduba tocar a sua flauta, a harmonia entrou em meu coração e comecei a sorrir – assentiu Jaci. – Lembrei das gerações passadas, da minha geração e das gerações futuras. E de vocês discutindo sobre a vida e os dilemas geracionais.
– Tem certeza que não foi Iansã que soprou em você essas coisas – brincou Oxalá. – Ela é muito imprevisível quando se trata da alma humana.
– Não me importa a autoria do pensamento. O que importa é que ele ilumine os caminhos – fingiu-se zangada, Jaci.
– “Faça-se a luz” – brincou Emanuel. – E nos conte a gênese de seu pensamento.
– Eu pensei em dizer que deveríamos consolar os que sofrem dizendo que nada pode apagar do mundo a vida que aconteceu para alguém, ainda que o seu corpo ateste o contrário – suspirou Jaci. – E quando a vida nasce para alguém, independentemente da sua duração, um fenômeno fantástico ocorre de forma contínua e indissolúvel, fazendo com que a vida seja uma certeza.
– Não foi o seu amigo xamã quem disse que acreditava no dom da transmutação da vida em outras vidas? – indagou Oxalá. – Não foi ele quem disse que as descobertas, os sorrisos, os espaços conquistados ou perdidos ao longo de uma vida não são destruídos pela morte do corpo. Da mesma forma as decepções, os choros e as dores de quem amamos, pois nos marcam com tão intensidade que ficam tatuados em nossas vidas como se fossem por nós diretamente adquiridos.
– Exatamente! Ele nos disse que uma vida tem o poder de fazer novas vidas, alterar o destino de outras, absolver as características de várias, incorporar-se à de algumas ou até mesmo construir um outro tipo de vida – continuou Jaci, relembrando as indagações de seu antigo visitante. – Como dizer que uma mãe não renasceu em sentimentos e experiências durante a gravidez? Mesmo o nascimento de seu filho não conseguirá apagar de sua memória a certeza de que fora capaz de produzir uma nova espécie de luz. A vida que dela brotou também fez dela um novo ser. Como dizer que um filho não contribui e modifica a vida de um pai, fazendo-o sentir um pouco do gosto de ser Deus, por ter reproduzido alguém à sua imagem e semelhança? Como retirar de nossa carga genética, emocional ou cultural as vidas de nossos antepassados? Como esconder o que aprendemos com os amigos, os amores e os professores que já passaram por nossas vidas?
– Definitivamente a nossa vida é também o somatório de outras vidas. – continuou, Jaci, diante do silêncio de seus amigos. – Enquanto estivermos vivos as gerações do ontem e do hoje estarão vivas conosco. E enquanto as pessoas com quem convivermos estiverem vivas, nós também teremos a certeza de que continuaremos vivos, mesmo após o incerto dia em que dirão que morremos. E estes com quem compartilhamos a nossa vida, transferindo um pouco de nós, certamente viverão conosco em outras vidas, até a eternidade. É a vida transmudada em outras vidas, eternamente.
– Obrigado Jaci! – agradeceu Oxalá – Eu estava precisado dessa conversa. Quando eu encontrar Iansã contarei do que você me disse. Acalenta-me saber que a vida permanece ativa, mesmo depois que o corpo se foi. A tarefa de quem fica é manter acesa a chama que alimentou aquela vida, fazendo com que ela continue útil e imortal.
– Não há o que agradecer Oxalá! – sorriu Jaci. – Eu mesma ouvi você soprar aos ouvidos das pessoas que buscavam consolo nos terreiros, após as perdas físicas sofridas, que era importante conservar e colecionar as fotografias na manutenção da lembrança dos traços físicos. Reviver e relembrar as aventuras, as ideias, os sonhos e lições ensinadas também. E que não deixar morrer a história de quem fisicamente partiu é uma missão geracional de quem ficou.
– Sempre reaprendo, nestas horas em que a morte nos faz lembrar da fragilidade do corpo, que devo cada vez mais compartilhar a minha vida – concordou Emanuel. – Quanto mais abrirmos a vida para o próximo, mais vivos continuaremos transmudados em outros corpos e corações.
– O antídoto para a morte seria continuar nascendo e crescendo em outras vidas – arrematou Jaci.
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