Nos últimos 30 anos, as mulheres negras brasileiras construíram ao essencial à luta por seus direitos, conseguimos nos constituir como sujeitos políticos autônomos. Por todo o país são inúmeras as organizações de mulheres negras que estruturam sua atuação tendo como foco a discriminação racial e, ao mesmo, as consequências do racismo sobre à sua condição como mulheres. Esse é um acontecimento político de considerável envergadura para o debate sobre cidadania, democracia e fortalecimento das organizações da sociedade civil no país.
O dia 25 de julho é parte dessa trajetória de organização. Como sempre relembramos o 25 de julho tem uma origem, de fato, regional – latino-americana e caribenha. Ele é resultado de uma decisão coletiva formulada por ocasião do 1º Encontro da Mulher Negra Latino-Americana e Caribenha, realizado em 1992, na República Dominicana. Esse encontro é um marco na organização política e autônoma das mulheres negras da região, porque durante toda a década de 90 do século passado, as mulheres negras da região passaram a defender, com muita firmeza, a necessidade e importância de criar grupos e coletivos de mulheres negras com o objetivo específico de lutar contra o racismo, a discriminação racial e contra o sexismo. Assim, e não por acaso, é nesse na República Dominicana que se decide criar a Rede de Mulheres Afro latino-americanas e Afro-caribenhas atuante até hoje.
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No Brasil, desde 2014, este também é o Dia Nacional das Mulheres Negras Teresa de Benguela. Liderando o Quilombo Quariterê, que existiu no século XVIII, na região do Vale do Guaporé, atual estado do Mato Grosso, Teresa de Benguela expressa a luta por liberdade e por humanidade. Isso é algo muito especial. Os quilombos no Brasil nos contam uma história de resistência à escravidão, subvertem a ideia de que africanos traficados como escravos para o Brasil foram completamente submetidos ou que aceitaram a condição de escravos sem qualquer tipo de rebeldia, revolta ou construção de alternativas. E Teresa nos conta, também, como as mulheres africanas escravizadas foram ativas nessa resistência.
É preciso reconhecer que as mulheres negras latino-americanas e caribenhas da atualidade contam, também, uma a história de mulheres africanas escravizadas, na experiência do tráfico transatlântico de escravos. O que é uma experiência essencialmente extraordinária na história das mulheres no mundo, ao menos na história moderna da humanidade.
Em cada região do planeta, as mulheres têm histórias próprias, incluindo servidão, mas a história das mulheres negras nas Américas conta a história do tráfico transatlântico de escravos; trabalho forçado, até a morte, em plantações de produtos para exportação; estupro na relação senhor-escrava; interdição, mais que sistemática, à possibilidade de constituir uma família própria – subalternização em graus variados, mas todos de grande intensidade. Isso para falar no período da escravidão. Nós pós escravidão o que nos define na humanidade e nossa luta, diária, de sermos reconhecidas como seres humanos com direito, dignidade e respeito. Assim, em minha opinião, o que define uma mulher negra no Brasil, na Colômbia, em Cuba, no Haiti, nos Estados Unidos, por exemplo, hoje, é a sua luta contra o racismo e contra e a desumanização forjada na escravidão.
A decisão de criar o 25 de julho como uma referência é essa: a decisão de lutar contra o racismo da perspectiva das mulheres negras, dar visibilidades às suas reivindicações por cidadania, por direitos, por respeito à nossa humanidade. O 25 de julho é uma data com essa vibração: resgatar o passado, fazer a crítica necessária sobre o nosso presente e dizer a sociedade qual futuro desejamos em cada um dos países que vivemos na região.
O nosso legado é a nossa vida cotidiana, o que fazemos por nossas famílias, por nossas comunidades. O legado é a nossa persistência em manter as tradições das comunidades de terreiro, são as reivindicações por moradia, por saneamento, por saúde. Nosso legado é indignar-se com o desemprego, subemprego e toda sorte de desqualificação do nosso trabalho, incluindo os quase quatro séculos de escravidão. O legado é a luta das mulheres quilombolas na preservação de suas terras, na importância que elas dão à educação das crianças e jovens de suas comunidades. Nosso legado é a luta, cotidiana por atenção às nossas comunidades esquecidas. Nosso legado está em preservar a cultura popular, as receitas, os quintais, as rezas, as práticas de benzer e dar ao outro a esperança de viver em saúde e bem-estar. Para essas o legado não é invisível, ele se desperta a cada novo dia, em que pese o racismo, a discriminação e os inúmeros preconceitos.
No Brasil, cunhamos uma expressão que hoje compreendo como sendo filosófica, “nossos passos vêm de longe”. Sim, uma marca política, conceitual e filosófica das mulheres negras brasileiras porque ela nos diz hoje que nós temos um passado escravizado, um passado de violência física e simbólica, mas ela nos diz, também, que resistimos. Nossos passos vêm de longe diz que nós temos uma experiência ancestral de conhecimento, resistência e poder e que essa experiência precisar ser, sempre, relembrada como experiência real para a luta de nossos dias. Nossas avós, mães, tias, antepassadas são a nossa fonte de resistência para lutar por um mundo melhor, sem racismo, com respeito e dignidade. Nós precisamos fazer a luta em respeito àquelas que vieram antes de nós, que sobreviveram antes de nós, que lutaram antes de nós, que morreram para que nós estivéssemos aqui. Por isso “nossos passos vêm de longe” é filosófico, porque não deixa nada escapar à experiência humana de existência, ele nos oferece o reconhecimento da ancestralidade, que pode ser religiosa (e muito frequentemente o é também), mas é ancestral como experiência de vida, de povo e de comunidade.
Em 1989, estudando no Canadá, tive a honra de conhecer a poeta Dionne Brand. Radicada em Toronto, Dione é caribenha, nascida em Trinidad. Nos tornamos próximas através de boas amigas em comum. Um dia em sua casa, não resisti e fui admirar com cuidado a sua incrível biblioteca. Foi então que me deparei com livros em capa dura e no tom marrom. Tirei um deles e fiquei encantada com seu conteúdo, histórias de mulheres negras afro-americanas atuando na área de saúde, enfermeiras, parteiras e outras.
Encantada, peguei o livro e me dirigi a Dionne. Pensando nas amigas negras brasileiras atuando na área de saúde, eu pensei que elas precisavam conhecer aquela maravilha. Daí o pedido à amiga poeta, perguntei se não haveria como ela me ofertar o livro para que eu pudesse compartilhar com as amigas no Brasil. Como era de seu costume, Dionne me lançou um leve sorriso para, em seguida, responder com uma generosa negativa. Acho que devo ter ficado espantada, mas ela completou seu argumento, ela não poderia doar aquele livro porque ele era, na verdade, parte de uma coleção. Isso mesmo, o que havia visto na estante não eram exemplares iguais, mas uma enciclopédia de legado das afro-americanas na área de saúde, algo como mais ou menos uns dez volumes.
No Brasil ainda não temos uma coleção como aquela, mas estou cada vez mais segura de que esse dia está mais próximo do que aquela primavera de 1989. Os nossos passos estão, felizmente, cada vez mais registrados como parte de nossa luta e, sim, nós podemos e faremos. O 25 de julho é parte dessa jornada, salve ele!
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