Há 30 anos, em 17 de maio de 1990, a Organização Mundial da Saúde retirou o código 302.0 (homossexualidade) da Classificação Internacional de Doenças (CID), cinco anos depois da retirada no Brasil em 1985. A data marcou o fim da patologização da homossexualidade e este significado rapidamente virou motivo para o 17 de maio ser o dia em que mundialmente se destaca o enfrentamento da LGBTIfobia em todas suas formas, seja individual, coletiva, societal, institucional, governamental ou jurídica.
Ao longo da história, a partir da Idade Média na cultura ocidental, a homossexualidade foi tratada primeiro como pecado, resultando mais tarde em queima de homossexuais nas fogueiras das inquisições. Depois foi tratada como crime. No Reino Unido, por exemplo, a homossexualidade foi criminalizada desde 1553 até 1967, o que se repercutiu em todo o antigo império britânico, o qual no seu auge ocupava 25% da superfície do planeta, com vestígios que persistem até hoje em alguns países. Depois foi tratada como doença, até sua retirada da CID em 1990. Apesar disso, 30 anos depois ainda existem pessoas e instituições que acreditam e também tentam “curar” pessoas LGBTI+.
Há registros de pesquisadores médicos na Alemanha, nos anos 1920, que implantavam os testículos de homens mortos em homossexuais, geralmente sem seu consentimento, com o objetivo de aumentar os níveis de testosterona visando maior virilidade. Também na Alemanha, durante o regime nazista (1933-1944), as “curas” para homossexuais incluíam castração seguida de injeção de doses muito altas de hormônios masculinos, para observar sinais de “masculinização”, lobotomia (intervenção cirúrgica no cérebro para curar ou melhorar sintomas de uma patologia psiquiátrica) e visitas forçadas a prostíbulos. Também na década de 1940 nos Estados Unidos, há registros de internação involuntária de homossexuais pela família em hospitais psiquiátricos, para curar a “doença sexual”. Muitas vezes foram submetidos a tratamentos cruéis e desumanos, como lobotomia, castração e terapia de choque.
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Em 1935, Sigmund Freud escreveu para uma mãe preocupada com o filho homossexual: “Não tenho dúvidas que a homossexualidade não representa uma vantagem, no entanto, também não existem motivos para se envergonhar dela, já que isso não supõe vício nem degradação alguma. Não pode ser qualificada como uma doença e nós a consideramos como uma variante da função sexual (…) É uma grande injustiça e também uma crueldade, perseguir a homossexualidade como se esta fosse um delito.”
Não obstante, nos anos 1950-1960, também nos EUA, após muitos anos de intensa perseguição policial aos homossexuais, terapias de aversão foram desenvolvidas para “curá-los” de seus desejos sexuais proibidas. A submissão a tais terapias foi uma forma de encurtar as penas de prisão daqueles que foram encarcerados por serem gays. A terapia de aversão continuou naquele país durante os anos 1950 e 1960. Da mesma forma, no Reino Unido, nos anos 1960 e 1970, o “tratamento” mais comum foi a terapia de aversão com choques elétricos.
Neste mesmo período, a percepção da homossexualidade e também da transexualidade como doenças foi incorporada por associações profissionais e pela própria Organização Mundial da Saúde (OMS). Em 1952, a American Psychiatric Association (APA) incluiu a homossexualidade em seu Manual de Diagnóstico e Estatístico de Transtornos (DSM) e só retirou em 1973. Em relação à OMS, “desvios” sexuais e de gênero apareceram na CID em 1965. Em 1977 a OMS incluiu a homossexualidade especificamente na CID, onde permaneceu por mais 13 anos. Já a transexualidade foi incluída pela APA no DSM em 1968 e foi incluída especificamente na CID pela OMS em 1975, só sendo retirada como transtorno em maio de 2019, há apenas um ano.
A partir dos anos 1970, com o surgimento da luta pela igualdade de direitos das pessoas LGBTI+, iniciou-se concomitantemente um contra-movimento, reivindicando a despatologização da homossexualidade e também, mais tarde, da transexualidade. É notável que o Grupo Gay da Bahia, através dos esforços de Luiz Mott e João Antonio Mascarenhas, conseguiu fazer com que o Conselho Federal de Medicina retirasse o código 302.0 já em 1985, cinco anos antes de sua retirada pela OMS.
Em vez de doença, a própria Organização das Nações Unidas e também a Organização dos Estados Americanos, em resoluções e documentos publicados a partir de 2008, passaram a considerar a cidadania plena das pessoas LGBTI+ como um direito a ser garantido.
Sendo objeto de repressão e reprovação durante séculos, a não aceitação da homossexualidade e da transexualidade ficou culturalmente arraigada, e desconstrução disso não acontece da noite para o dia e um dia. Não obstante, neste ínterim tivemos avanços no reconhecimento da igualdade de direitos das pessoas LGBTI+ no mundo e no Brasil. Na última década no Brasil, graças ao Supremo Tribunal Federal, casais do mesmo sexo podem casar e adotar filhos, as pessoas trans tiveram o direito à identidade de gênero reconhecido, a discriminação e a violência LGBTIfóbicas foram reconhecidas como formas de racismo e puníveis como tais, pode se falar novamente sobre gênero e diversidade sexual nas salas de aula e há uma semana foi reconhecida a inconstitucionalidade da restrição da doação de sangue por gays, bissexuais masculinos e pessoas trans.
Por outro lado, ainda há diversos desafios. Mundo afora ainda há 68 países membros das Nações Unidas que criminalizam a homossexualidade, sendo que em doze deles a punição é a pena de morte. No Brasil, todo ano são assassinadas mais de 300 pessoas LGBTI+ somente pelo fato de serem LGBTI+. O Brasil é o país que mais mata pessoas trans no mundo. Para muitos/as estudantes LGBTI+, a escola é um inferno: pesquisa de 2015 mostrou que 60% se sentiam inseguros/as, 73% foram agredidos/as verbalmente e 36% foram agredidos/as fisicamente na escola no último ano por serem LGBTI+.
Ou seja, o marco dos 30 anos da despatologização da homossexualidade e do 1º ano da despatologização da transexualidade são de suma importância, mas ainda temos que avançar para chegar à cidadania plena das pessoas LGBTI+.
* Toni Reis é diretor presidente da Aliança Nacional LGBTI+, diretor executivo do Grupo Dignidade e pós-doutor em educação.
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