Durante a pandemia de covid-19, as universidades públicas brasileiras, como a grande maioria das atividades no planeta, tiveram de reduzir ou mesmo suspender suas atividades presenciais e optar pelas atividades virtuais para evitar a contaminação. Ainda que isso tenha produzido prejuízos para o aprendizado e para o desenvolvimento de várias pesquisas, o trabalho remoto acabou de certa forma representando uma tábua de salvação para as instituições públicas de ensino superior. Com os cortes profundos que sofreram no orçamento, elas simplesmente não teriam recursos para pagar suas contas de água, luz, internet, etc, se os alunos, os professores e os servidores tivessem ido trabalhar presencialmente.
É a constatação que faz a coordenadora do Sou_Ciência (Centro de Estudos Sociedade, Universidade e Ciência), Soraya Smaili, professora de Farmacologia e ex-reitora da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp). “As universidades e institutos de pesquisa públicos brasileiros ficaram muito próximos do colapso. E, na verdade, muitos deles ainda correm o risco de não conseguir fechar o ano diante dos novos cortes imprimidos pelo atual governo”, revela ela, nesta entrevista ao Congresso em Foco.
Leia também
De acordo com levantamento feito pelo Sou_Ciência, as universidades públicas tiveram um corte de mais de 45% nos seus recursos de custeio durante o governo Jair Bolsonaro. Recursos de custeio são aqueles utilizados para o pagamento das despesas correntes. “São aqueles recursos para o dia-a-dia: limpeza, manutenção, água, luz, telefone, internet”, exemplifica Soraya.
Veja abaixo trecho da entrevista de Soraya Smaili:
Os gráficos produzidos a partir dos levantamentos do Sou_Ciência são uma assustadora ladeira abaixo. De um valor de R$ 8,6 bilhões para “outras despesas correntes” em 2018, os recursos caíram em 2022 para R$ 4,4 bilhões.
PublicidadeSe a situação é de penúria quanto ao pagamento do básico, a situação fica ainda mais dramática quando se pensam em investimentos. Outra vez, o gráfico é praticamente uma ladeira abaixo, com uma pequena elevação em 2020. Os recursos para investimentos em universidades caíram de R$ 320 milhões em 2020 para somente R$ 97,5 milhões em 2022.
Paralisação de projetos
Isso significou a paralisação ou interrupção de diversos projetos em andamento. Como o Projeto Sirius, que cria um acelerador de partículas em Campinas (SP). Somente do Fundo Nacional de Desenvolvimento da Ciência e Tecnologia (FNDCT), foram contingenciados R$ 44 bilhões, em valores atualizados pelo índice de Preços ao Consumidor Amplo (IPCA). “Ao longo desses últimos cinco anos, começando já no período Michel Temer, nós começamos a ter fortes contingenciamentos, até que chegamos no ano passado na seguinte situação: o recurso que foi amontado, que foi acumulado com esses contingenciamentos, que não foi utilizado, foi removido da conta do fundo e foi repassado para a conta do Tesouro. Nós somamos, fizemos esse estudo. Perdemos no total R$ 35 bilhões. Aos preços de hoje, valores ajustados ao IPCA de setembro de 2022, esses recursos equivalem a R$ 44 bilhões. É inimaginável hoje o que seriam R$ 44 bilhões ao longo dos últimos cinco anos nas nossas universidades, institutos de pesquisa, institutos técnicos e tecnológicos”, diz Soraya.
Em relatório que foi entregue ao Grupo de Trabalho de Educação no governo de transição, o Sou_Ciência pede a recuperação dos valores de 2019.”É um pleito mínimo que nós fazemos para que as universidades federais possam voltar a respirar”, considera. Ela também reforça a necessidade de recuperação dos valores de bolsas de estudos, uma vez que boa parte dos projetos de pós-graduação estão comprometidos. “Nós estamos tendo uma perda considerável no número de pós-graduandos. E isso certamente traz um prejuízo para a pesquisa, para a ciência e para o país”, justifica.
Veja a íntegra do relatório:
Não fechar o ano
Com os últimos cortes estabelecidos, Soraya Smaili alerta que muitas universidades podem não conseguir fechar o ano. O que seria algo injusto e trágico com instituições que foram fundamentais no processo de combate à covid-19 no país.
“Nós não paramos um minuto sequer. Ao contrário: nós trabalhamos muito mais”, diz a ex-reitora da Unifesp. As 68 universidades públicas do país atenderam a uma população estimada de mais de 40 milhões de pessoas. Algumas situações não seriam sanadas sem as universidades. Quando não havia álcool em gel disponível para comprar, mesmo importando, foram as universidades que fabricaram. Elas também fabricaram respiradores e outros equipamentos. Garantiram a fase 3 dos estudos das vacinas de Oxford, produzida pela Fundação Oswaldo Cruz, e Coronavac, fabricada pelo Instituto Butantan. A fase 3 é o estudo de eficácia das vacinas com um grande número de participantes.
Veja trecho da entrevista:
Para Soraya Smaili, se o país não tivesse vivido os últimos quatro anos sob um governo que despreza a ciência e não dá prioridade a ela, o panorama poderia ser bem outro. “Diversas coisas poderiam ter avançado. O Laboratórios Sirius é um exemplo. Nós tivemos várias vacinas para covid-19 que não puderam entrar em fase clínica porque não tivemos recursos para isso. Além de outras tecnologias para a saúde, como a vigilância genômica, a vigilância epidemiológica, que poderia nos ajudar a evitar as crises pandêmicas”, enumera.
A população apoia a ciência
Apesar da situação de penúria e todos os desafios, Soraya Smaili acredita que o teste da pandemia foi positivo para a ciência e para a sua relação com a população brasileira. Uma pesquisa realizada pelo Sou_Ciência apontou que o cientista passou a ser após a pandemia uma das profissões de maior credibilidade reconhecida pelos brasileiros.
“A população apoia a ciência”, diz ela. “Há três anos, o brasileiro não conseguia falar quem eram os pesquisadores e cientistas da atualidade. Alguns conseguiam lembrar de pesquisadores antigos e renomados, como Oswaldo Cruz ou Carlos Chagas, mas não conseguiam lembrar de nomes do presente. Hoje, nós temos muitos nomes sendo lembrados”, afirma.
Nomes como das pesquisadores Ester Sabino e Jaqueline Góes, que sequenciaram o vírus da covid-19. Ou a infectologista Margareth Dalcomo. “E, para nossa alegria, muitas mulheres que se destacaram”, comemora ela.
“A educação e a ciência juntas poderão resolver muitos problemas, aliadas também á saúde, porque nós temos também muita pesquisa voltada para a saúde da população. E uma população saudável é uma população que produz mais, que reverte em desenvolvimento”, conclui Soraya Smaili.
Veja mais um trecho da entrevista:
Este trabalho recebeu apoio do Instituto Serrapilheira (Número do processo Serra – R-2206-41148)