Por Luiz Henrique Antunes Alochio*
Um conto (automobilístico) de duas cidades
A Ponte Deputado Darcy Castello de Mendonça, popularmente conhecida como “Terceira Ponte”, liga as cidades de Vitória e Vila Velha, no estado do Espírito Santo. Até recentemente tinha duas faixas de rolamento, que foram transformadas em três pistas. Como dizia um antigo chiste capixaba, quando alguém quer fazer caber algo maior do que o espaço disponível: “Vão botar o Rio de Janeiro dentro de Cachoeiro de Itapemirim”.
Brincadeiras à parte, o certo é que a largura de cada pista de tráfego foi estreitada. A largura “desejável” de uma faixa de trânsito é algo em torno de 3,5 metros. A nova composição da Terceira Ponte tem uma das faixas com 3,10 metros (destinada para ônibus, motos, viaturas e ambulâncias) e as duas outras com 2,80 metros de largura.
Inúmeros são os comentários, seja na imprensa local ou mesmo nas conversas do dia a dia dos moradores das duas cidades mais afetadas, questionando: “se vai ficar tão estreito, como ficarão os “corredores” para passagem de motos entre os carros”? Sim, os “corredores”, aquela mania de motocicletas trafegando entre a separação de pistas, no meio dos carros.
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Direitos, privilégios e um veto imprestável
Essa questão não é nova. E merece uma volta no tempo para uma compreensão do que, na ciência do Direito, signifique “ter um direito” ou “ter um privilégio legal”. Vamos ver isso de forma muito simples.
A redação original aprovada no Congresso Nacional para o Projeto de Lei que originou o Código de Trânsito Brasileiro continha um artigo 56 que previa expressamente: “É proibida ao condutor de motocicletas, motonetas e ciclomotores a passagem entre veículos de filas adjacentes ou entre a calçada e veículos de fila adjacente a ela.” Esse artigo recebeu veto total do presidente da República na época, justificando que, ao proibir ao condutor de motocicletas e motonetas a passagem entre veículos de filas adjacentes, a lei estaria restringindo a utilização desses tipos de veículos. Dizia que “em todo o mundo, é largamente utilizado como forma de garantir maior agilidade de deslocamento”. Referia ainda que a segurança dos motoristas está relacionada “aos quesitos de velocidade, de prudência e de utilização dos equipamentos de segurança obrigatórios”.
PublicidadeNunca li, com a devida vênia — devida vênia é quando vamos bater forte e pedimos desculpa primeiro —, uma justificativa tão falsa, usando argumentos verdadeiros. Sim! Pode-se mentir com a verdade, basta que a verdade seja apresentada parcialmente. Primeiro, não é “em todo o mundo” que motos podem fazer o que se convencionou autorizar no Brasil. Nos Estados Unidos, dos 50 estados americanos, apenas a Califórnia autoriza o “Lane Splitting”. Nos demais, ou tem proibição expressa ou não consta regulamentação (equivalendo a uma não permissão). Na Inglaterra, é permitido, mas tem regras.
Logo, nos países — como na Inglaterra — onde uma motocicleta pode trafegar no espaço entre faixas de veículos, exigem-se cautelas como, por exemplo, o trânsito estar parado ou em ritmo lento, e haver uma regra regulamentadora. E as motos não podem vir com velocidade ou “costurando”. Segundo, a segurança de tráfego, não está relacionada apenas a velocidade ou equipamentos de segurança. A distância entre veículos também! Aliás, muito mais do que a simples noção de velocidade. E, por distância entre veículos, não temos apenas a distância à frente e a distância atrás. Temos, também, a distância lateral.
Enfim, o veto foi possivelmente para agradar a uma indústria que perderia muito, se o trânsito fosse mais rígido para aquele tipo de veículo.
Um novo projeto, um novo veto e uma confirmação do não-direito
O Congresso Nacional aprovou, no ano de 2020, o Projeto de Lei 3264/2019. Durante o processo legislativo, o projeto recebeu uma proposta de emenda que inseria um art. 56-A, aprovado com a seguinte redação final:
“Art. 56-A. É admitida a passagem de motocicletas, motonetas e ciclomotores entre veículos de faixas adjacentes no mesmo sentido da via quando o fluxo de veículos estiver parado ou lento, conforme regulamentação do Contran.
§ 1º Se houver mais de duas faixas de circulação, a passagem somente será admitida no espaço entre as duas faixas mais à esquerda.
§ 2º Se houver faixa exclusiva para veículos de transporte coletivo à esquerda da pista, esta será desconsiderada para fins do disposto no § 1º deste artigo.
§ 3º Não será admitida a passagem entre a calçada e os veículos na faixa a ela adjacente.
§ 4º A passagem de motocicletas, motonetas e ciclomotores entre veículos de faixas adjacentes deve ocorrer em velocidade compatível com a segurança de pedestres, ciclistas e demais veículos.
§ 5º Os órgãos e entidades com circunscrição sobre a via poderão implementar áreas de espera específicas para os veículos de que trata o caput deste artigo, junto aos semáforos, imediatamente à frente da linha de retenção dos demais veículos, na forma definida pelo Contran.”
Nota-se tratar de um dispositivo legal com preocupação efetivamente regulamentadora de um privilégio legal. Trazia regras razoavelmente seguras, ou, mais seguras que o verdadeiro vácuo normativo que hoje vemos no Brasil.
Ocorre que o art. 56-A foi objeto de veto, conforme Mensagem de Veto nº 588 de 13 de outubro de 2020, com a seguinte fundamentação:
“Em que pese a boa intenção do legislador, os dispositivos restringem a mobilidade e geram insegurança jurídica ao admitirem a passagem de motocicletas, motonetas e ciclomotores entre veículos de faixas adjacentes no mesmo sentido da via somente quando o fluxo de veículos estiver parado ou lento, conforme regulamentação do Contran. Atualmente, há ampla possibilidade de circulação entre os veículos e a proposta reduz a mobilidade das motocicletas, motonetas e ciclomotores que é o diferencial desses veículos que colabora, inclusive, na redução dos congestionamentos. A dificuldade de definição e aferição do que seja ‘fluxo lento’ aumenta a insegurança jurídica sendo inviável ao motociclista verificar se está atendendo eventual regulamentação do CONTRAN.”
Mais uma vez um erro. Atualmente — como refere o veto — há ampla liberdade. Não, não há. Mais uma vez, confundem um vácuo regulador com “liberdade” de exercer um “direito”, quando se está diante de um “privilégio legal”. Mais uma vez, como privilégio, sem regulação efetiva, não cabe ser exercido.
De toda sorte, mesmo com razões equivocadas, a Mensagem de Veto 588 foi acatada, e no art. 56-A não mais consta da redação em vigor da Lei Federal 14.071/2020, onde se lê: “Art. 56-A. (VETADO).”
A pergunta esquecida que a Terceira Ponte faz ressurgir
A pergunta que não quer calar e que ninguém fez nesses 26 anos de Código de Trânsito: qual é o efeito prático daquele veto inicial ao Código de Trânsito? Juridicamente, nenhum. O fato de não existir uma proibição expressa não significa que haja uma permissão. Pilotar um veículo não é um direito. Logo, não se aplica o velho ditado: “O que não é proibido é permitido”.
Dirigir um veículo — tecnicamente — é um dos chamados “privilégios legais”. Um “privilégio” é aquilo que só posso fazer “autorizado” e “nos limites das regras de permissão legal”. Não existir uma “proibição expressa” não significa que exista uma “permissão expressa”. E, como “privilégio”, meus limites de permissão não poderiam ser estendidos ou ficticiamente interpretados. Caso contrário, teríamos os chamados “privilégios odiosos”, com a extensão até o infinito de privilégios para certas categorias.
A “nova terceira ponte” nos trará, portanto, — quem diria — um debate tão necessário quanto urgente, pois há 26 anos esse tema dos “corredores de motos” necessita de um tratamento legal, jurisprudencial e doutrinário mais adequado no Brasil.
* Luiz Henrique Antunes Alochio é doutor em Direito (Uerj) e advogado no Espírito Santo.
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