A imprensa noticiou que, por decisão do governador Tarcísio de Freitas e do secretário da Segurança Pública, Guilherme Derrite, a Polícia Militar do Estado de São Paulo passaria a ter atribuição para redigir o chamado termo circunstanciado, peça principal dos processos destinados a apurar os crimes de menor potencial ofensivo.
A medida, de acordo com o governador e seu secretário, teria por objetivo otimizar o serviço e evitar que os policiais militares permaneçam paralisados por longo tempo nos distritos policiais, prejudicando o policiamento ostensivo.
Não é a primeira vez que a cúpula da Polícia Militar reivindica a atribuição, hoje restrita à Polícia Civil.
A Polícia Civil, por sua vez, insiste em afirmar que a elaboração do termo circunstanciado é sua tarefa privativa por se tratar de atividade típica de polícia judiciária.
Como já havia ocorrido anteriormente, a pronta reação da cúpula da Polícia Civil e de suas entidades de classe surtiu efeito e, até o momento, a medida anunciada não foi implementada. A questão que, em um primeiro momento, não desperta grande interesse, traz à baila, mais uma vez, a não disfarçada rivalidade entre as duas polícias.
A rivalidade e a disputa de espaço entre as duas corporações já havia aparecido em nota emitida por entidade de classe da Polícia Civil protestando contra a ausência de policiais civis em operação coordenada pelo Grupo de Atuação Especial de Combate ao Crime Organizado (Gaeco) do Ministério Público do Estado de São Paulo que apurou a participação do PCC em lavagem de dinheiro em licitações envolvendo o transporte público. Como foi amplamente noticiado, a Operação Fim da Linha visava a apurar e a reprimir a atuação do crime organizado em atividade essencial em São Paulo. Como se recorda, os mandados expedidos naquela operação foram cumpridos exclusivamente pela Polícia Militar.
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Os dois episódios — disputa sobre o protagonismo na elaboração dos termos circunstanciados e participação em operação em parceria com o Ministério Público — mostram uma evidência: o que está em discussão é a exata atribuição de cada uma das polícias.
A matéria foi disciplinada na Constituição Federal e o artigo 144, em seus §§ 4º e 5º estabelece a distinção entre as duas funções. Em síntese, cabe à Polícia Civil a função de polícia judiciária e de apuração das infrações penais, enquanto à Polícia Militar cabe o exercício da polícia ostensiva e a preservação da ordem pública. Ou, em outras palavras, cabe à Polícia Militar o trabalho preventivo e ostensivo e à Polícia Civil o trabalho de investigação após a prática da infração penal (uma leitura simples da Constituição parece dar razão à Polícia Civil no que se refere à elaboração do termo circunstanciado — tarefa da polícia judiciária e de investigação).
Sucede, no entanto, que a linha que separa o trabalho de prevenção e repressão nem sempre é clara, pelo que, com frequência, surgem discussões sobre quem deveria agir em algum caso concreto.
Em verdade, a existência de duas polícias com funções que, muitas vezes, não se distinguem, obviamente não produz bons resultados. A polêmica sobre o termo circunstanciado, constitui apenas mais um episódio da luta pela conquista de espaço e é apenas mais um capítulo da constante troca de farpas entre as duas instituições.
Em São Paulo, em particular, esta luta por espaço (ou por poder) tem uma característica especial. O atual secretário da Segurança foi eleito deputado federal com um discurso em que apresentava como mérito sua atuação como policial militar, pelo que, a Polícia Civil se sente desprestigiada.
Acrescente-se que também as guardas municipais lutam por mais espaço e frequentemente realizam operações em que invadem as funções que constitucionalmente são privativas da Polícia Militar e da Polícia Civil.
Toda esta situação demonstra que está mais do que na hora de se pensar na unificação das polícias.
A ideia não é nova e enfrenta grande resistência. As cúpulas das duas policiais, sempre que se fala em unificação, defendem a desnecessidade da medida, afirmando que as duas polícias trabalham de “maneira conjunta e harmônica”. A não unificação talvez seja o único tema que, de fato, una as duas polícias.
Mesmo que se aceite a ideia de trabalho harmônico, é mais que óbvio que a duplicidade de comando não se justifica. É o caso de se indagar. Se, de fato, o trabalho é harmônico, qual a razão da divisão de comandos?
Para se ter uma ideia da falta de lógica, basta dizer que, se houver excesso por parte de policiais em uma ação conjunta, poderá haver tratamento diferenciado, eis que há corregedorias diferentes com procedimentos disciplinares distintos e que poderão ser julgados de maneira diversa pela Justiça Comum ou Justiça Militar.
Ninguém nega a validade da existência de uma polícia fardada que realize o patrulhamento ostensivo e, eventualmente, repressivo. O que não se justifica é a divisão de trabalhos e, sobretudo, de comando em funções que se complementam.
Se alguém indagar aos munícipes, destinatários finais do serviço policial, o que diferencia o trabalho de cada uma das polícias, poucos serão capazes de responder. Tanto isto é verdade que as pesquisas de opinião indagam sobre a qualidade do serviço policial como um todo, sem qualquer distinção.
A duplicidade de comando importa, obviamente, em aumento de custo. Como é sabido, a burocracia se alimenta e muitos policiais se dedicam a atividades burocráticas que se repetem (uma mesma ocorrência pode ter registro diferentes conforme a visão de cada uma das instituições). Assim, até mesmo para a contenção de custos, a unificação das polícias é desejável.
Evidente que a unificação proposta demandaria um período de adaptação com o estudo de situações pessoais já consolidadas. Mas, por mais difícil que seja a adaptação, a unificação das polícias representaria em avanço e o fim de discussões bizarras, tais como quem pode elaborar um termo circunstanciado.
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