O Brasil está utilizando os sistemas de empresas multinacionais de tecnologia para armazenar dados críticos do governo. Contratos recentes entre o Serpro, a empresa de tecnologia e processamento de dados do governo federal, e as big techs, como a Google, Amazon, Microsoft e Huawei, têm gerado polêmica no meio científico e agora chegaram ao Congresso Nacional.
O debate reverberou na Câmara dos Deputados. A Comissão de Ciência, Tecnologia e Inovação ouviu diversos setores sobre o risco de o país estar perdendo sua autonomia no armazenamento de dados usados nos sistemas públicos (1). Isso inclui não apenas os órgãos de governo, mas também universidades, de onde vêm as críticas mais contundentes à política de Tecnologia da Informação e Comunicação (TIC), que são os recursos tecnológicos utilizados atualmente, como redes de computação, computadores, telefones, servidores, implementada atualmente pelo governo.
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Basicamente, o Serpro tem firmado convênios com grandes empresas sem licitação, justificando essa prática com base em interpretações legais (2) (3). Apesar do programa se chamar “Nuvem Soberana”, o arranjo comercial em questão está longe de garantir soberania. Os sistemas implementados nas próprias unidades conectam-se a servidores estrangeiros, colocando dados críticos sob a legislação de outros países e acessíveis a terceiros.
A Dra. Ana Maria Ribeiro, diretora da área de tecnologia da informação da UFRJ, destacou que a falta de investimentos em data centers próprios compromete a autonomia científica e tecnológica do Brasil. Para 2025, a universidade gigante dispõe de apenas 1,5 milhão de reais para manutenção e investimentos em seus sistemas de data center (6).
Para contextualizar, o treinamento do GPT-4, da OpenAI, custou cerca de 78 milhões de dólares, enquanto o Gemini Ultra, do Google, consumiu 191 milhões de dólares (7). Essa disparidade ilustra como a falta de investimentos nos deixa dependentes de infraestruturas estrangeiras, como destaca a Dra. Ana Maria Ribeiro:
“Nós temos inúmeras pesquisas feitas nas universidades e inúmeros pesquisadores que têm competência e se apresentam internacionalmente, e podemos estar perdendo isso. E nos estados unidos tem uma lei que se está armazenado lá dentro, independente de quem seja, a gente é obrigada a entregar. No caso da minha universidade, o que é dos processos administrativos, estão dentro da nossa infraestrutura, mas não é o caso de várias universidades, que continuam usando e-mails dessas plataformas.”
Com o avanço da inteligência artificial e da economia baseada em dados, controlar as infraestruturas digitais tornou-se ainda mais crucial. Estamos falando da capacidade de armazenar, processar e criar novos modelos baseados em dados. O professor Sérgio Amadeo, especialista no tema, destaca que o Brasil desempenha um papel secundário no cenário tecnoeconômico global: 1) fornecedor de dados da população; usuário avançado e comprador de produtos e serviços digitais; desenvolvedor de aplicativos utilizando as estruturas das big techs (8).
A grande barreira é convencer os governos de que investir em servidores e infraestrutura própria é essencial para o cenário de cibercultura, da economia de dados e cibersegurança. Entretanto, mesmo em universidades, prevalece a visão ultrapassada de que TIC serve apenas para tarefas simples, como apresentações em sala de aula, como explica a Dra. Ana Maria Ribeiro:
” Ainda persiste a mentalidade de que a tecnologia da informação é apenas aquele “rapaz do data show” ou alguém que conserta o computador que não está ligando. No entanto, a TI se transformou completamente nos últimos dez anos. Atualmente, vivemos em um ambiente de proliferação e produção constante de novos dados, o que envolve desde infraestrutura — como cabos de rede e cabos submarinos — até a necessidade de engenheiros e profissionais que garantam o funcionamento das redes e a segurança da informação. Hoje, a maioria da população ainda não sabe identificar se um link recebido é verdadeiro ou falso.”
O governo lançou recentemente o Plano Brasileiro de Inteligência Artificial durante a 5ª Conferência Nacional de Ciência, Tecnologia e Inovação, em Brasília, em julho último (9). Qual o impacto desse plano na questão dos data centers?
O plano tem boas intenções, como usar inteligência artificial para enfrentar desafios nacionais e garantir segurança e direitos. No entanto, o problema é mais profundo e envolve governança, especialmente a concentração de dados e poder nas mãos de grandes empresas estrangeiras.
Hoje, os Estados Unidos detêm 39% dos maiores data centers do mundo, enquanto a China concentra outros 10%. Isso significa que metade da capacidade mundial está nas duas grandes potências, evidenciando a concentração de poder econômico. No Brasil, 72% das universidades utilizam e-mails do Google, segundo o estudo “Educação Vigiada” (10). Isso exemplifica o que pesquisadores chamam de “colonialismo digital” – um novo tipo de controle das nações ricas sobre as em desenvolvimento.
Uma alternativa seria criar data centers federados para universidades brasileiras, como sugere a Dra. Ana Maria Ribeiro, que se inspira no modelo do Sistema Único de Saúde (SUS):
“Eu tenho defendido que a política de data center precisa ser uma política de Estado, e não apenas de governo. Isso significa que é necessário criar formas de financiamento para sustentar essa política pública de maneira permanente. É preciso adotar um modelo semelhante ao do SUS, em que hospitais especializados estão sob gestão do governo federal. Atualmente, os estados têm diferentes níveis de responsabilidade dentro de um modelo básico, mas manter um data center, com toda a infraestrutura necessária, é extremamente caro e insustentável. Espalhar data centers por diferentes locais aumenta o consumo de recursos, como água, o que vai contra os princípios de sustentabilidade.
Além disso, é fundamental defender práticas sustentáveis e repensar o uso intensivo de ferramentas de IA no dia a dia, buscando equilíbrio e eficiência no uso dessas tecnologias.
O autor do pedido de audiência na CCTI, deputado Rui Falcão (PT-SP), defendeu a soberania sobre os dados públicos e estratégicos do estado. Ele ressaltou que é essencial não apenas controlar os dados, mas garantir que estejam armazenados em território nacional. Até mesmo os Estados Unidos estão preocupados em regular as big techs (11).
A lei que permite convênios sem licitação com multinacionais precisa ser revista. Enquanto continuarmos utilizando tecnologia estrangeira, mesmo sob o rótulo de “Nuvem Soberana”, perpetuaremos a dependência do Brasil em relação aos países hegemônicos. Não há soberania real enquanto formos meros consumidores e não desenvolvedores de tecnologia.
(1) https://www.gov.br/mcti/pt-br/acompanhe-o-mcti/noticias/2024/11/ia-e-a-soberania-nacional-sao-destaques-em-audiencia-na-camara-dos-deputados
(2) https://www.poder360.com.br/futuro-indicativo/orgao-federal-faz-acordo-sobre-dados-de-brasileiros-com-empresa-americana/
(3) https://telesintese.com.br/serpro-investe-r-700-milhoes-na-nuvem-soberana-de-governo/https://repositorio.fgv.br/items/087d0dfc-671d-4e9e-bf2d-f99a5b1733d4
(4) https://www2.camara.leg.br/atividade-legislativa/comissoes/comissoes-permanentes/cctci/apresentacoes-em-eventos/apresentacoes-de-convidados-em-eventos-de-2024/27-11-2024-sm-soberania-digital/sergio-amadeu
(5) https://www.poder360.com.br/futuro-indicativo/orgao-federal-faz-acordo-sobre-dados-de-brasileiros-com-empresa-americana/
(7)https://x.com/samadeu/status/1798426594395971656
(8)https://x.com/samadeu/status/1798426594395971656
(9)https://x.com/samadeu/status/1798426594395971656
(10) https://educacaovigiada.org.br/pt/mapeamento/brasil/
(11) https://www.cnnbrasil.com.br/economia/macroeconomia/governo-dos-eua-procura-formas-de-regular-big-techs-veja-algumas-opcoes/
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