Em 1820, dois anos antes de o país se tornar independente, José Bonifácio de Andrada e Silva escreveu um texto intitulado “Necessidade de uma academia de agricultura no Brasil”. O Brasil era um país essencialmente agrícola, situação à qual, de certo modo, retorna nesta segunda década do século 21. Mais, porém, do que defender a agricultura brasileira, José Bonifácio demonstra no texto que a autonomia de um país está diretamente ligada à sua capacidade de desenvolver conhecimento e tecnologias próprias. Para tanto, ele retorna à experiência de Portugal, o país do qual o Brasil dois anos depois iria se libertar.
“A escola e academia de Sagres, fundada por um infante português, deve sem dúvida a Europa as luzes que a ilustram, a perfeição das artes que a enobrecem, a extensão do comércio que a enriquece e quase todas as comodidades que desfruta”, escreve aquele que ganhou o epíteto de “Patriarca da Independência”. “Sem ela ainda o nosso Portugal não teria feito no mundo a brilhante representação, que apenas se pode acreditar lendo-se a história”.
Sem Sagres, não haveria Europa forte
José Bonifácio, assim, remete ao conhecimento tecnológico de Portugal no início das grandes navegações não apenas o desenvolvimento do próprio país, mas o desenvolvimento de toda a Europa. Sem o impulso dado pelas conquistas portuguesas, primeiro na África e depois no continente americano, onde o maior triunfo é justamente o Brasil, a Europa não teria atingido o estágio de riqueza e desenvolvimento que adquiriu após o Renascimento.
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“A mesma academia devemos esta bela, rica e admirável terra que possuímos, que os estrangeiros tanto invejam, e se conhece com o nome de Brasil”, prossegue Bonifácio.
“Se outro infante português, que a Divina Providência porém colocou sobre o trono de seus augustos maiores e conduziu milagrosamente a estas vastíssimas regiões, quiser nelas estabelecer outra academia, dirigida ao fim importantíssimo de aproveitar a riqueza que a natureza nos oferece, e para cuja possessão literalmente nos convida, a nação portuguesa, aqui reproduzida, como em outros tempos os troianos na formosa Itália, recobrando a sua antiga energia, há de outra vez dar lições ao mundo, conduzir os homens pela mão e mostrar-lhes os mais preciosos interesses, oferecendo em perpétua paz à indústria universal o mais firme e seguro asilo”, defende o “Patriarca da Independência”.
Sem ciência, nenhum país é independente
Duzentos e dois anos depois de Bonifácio redigir esse texto, duzentos anos depois de Bonifácio ajudar Dom Pedro I a conduzir a independência do nosso país, o professor Renato Janine Ribeiro, presidente da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC), recebeu o Congresso em Foco para uma entrevista no amplo salão principal da Faculdade de Arquitetura da Universidade de Brasília (UnB). Dois séculos depois, nos corredores da UnB, a comunidade científica precisava retornar aos mesmos argumentos de José Bonifácio em 1820. Sem conhecimento, não se desenvolve a ciência. “Sem ciência, nenhum país será jamais inteiramente independente, inteiramente soberano”, afirmou Janine.
A 74ª Reunião Anual da SBPC, que aconteceu em Brasília em julho, teve exatamente essa questão como tema, como reflexão no momento do bicentenário da independência brasileira. No discurso de abertura da reunião, Janine comemorava o fato de poder ter feito um encontro presencial. Mas lamentava a tragédia anterior nos dois anos de pandemia que levaram à morte de mais de 600 mil brasileiros.
“Mas justamente por esse sentido sempre de progresso da ciência é que é tão importante a ciência para o desenvolvimento econômico social. E esse é um ponto crucial para o Brasil hoje, uma grande lição, porque nesses anos perdemos muito mais vidas do que teríamos perdido se o Brasil tivesse escutado a ciência, se o Brasil tivesse tomado os cuidados necessários para proteção das pessoas com distanciamento, máscara, que ainda são necessários”, disse Janine. Também o infectologista Pedro Hallal, professor da Universidade Federal de Pelotas (Ufpel), aponta para os mesmos problemas ao pedir socorro para a ciência brasileira.
Na série que inicia hoje, ano em que se comemoram os 200 anos da Independência brasileira, o Congresso em Foco irá mostrar como o desmonte da ciência, por ações e inações do governo, contribuiu não apenas para o agravamento da covid-19, como apontaram Janine e Pedro Hallal, mas para diversos outros prejuízos.
A reportagem que abre esta série mostra que, justamente nos dois anos da pandemia, o Brasil teve os menores volumes de investimentos e de despesas em ciência e tecnologia. Ficamos dependentes – e ainda estamos – da importação de vacinas, respiradores e outros insumos. E a saúde é apenas uma das áreas afetadas pela falta de incentivo, pelo corte de recursos, pela fuga de cérebros.
Como dizia José Bonifácio em 1820, o Brasil poderia dar “lições ao mundo”, poderia “pegar o mundo pela mão”. Não o fez. “Se, pelo contrário, conhecermos bem a terra que habitamos (…) e chamarmos em nosso auxílio a clínica, ciência encantadora e quase divina, ofereceremos sem dúvida às artes nacionais e estrangeiras matérias ou novas ou melhores”.
“Pelo contrário”, não o fizemos. A ciência está à deriva. É o que o Congresso em Foco começará a mostrar a partir de hoje.
Este trabalho recebeu apoio do Instituto Serrapilheira (Número do processo Serra – R-2206-41148)