Muito embora a polarização política e a campanha de desmoralização das urnas eletrônicas sejam grandes desafios para a próxima eleição, o maior deles, sem qualquer dúvida, são as fakes news, cujos malefícios e capacidade de intervir na vontade do eleitorado são devastadores. Até hoje, desde a existência da democracia nos seus mais variados formatos e sistemas, não havia surgido um inimigo maior ao processo democrático do que a viralização das informações falsas através da rede mundial de computadores. Elas são capazes de mudar, às vésperas do pleito, os votos dos mais convictos, sem que haja tempo hábil tanto para seu desmentido como, principalmente, para a reversão do pensamento do eleitor iludido por elas.
A rigor, fake news, sobretudo com objetivos de obtenção de vantagens em disputas religiosas ou por motivação político-eleitoral, sempre existiram, a história registra centenas delas. E como arma política, as fake news são bem anteriores à democracia.
Aqui no Brasil a fake news mais famosa é o plano Cohen, que mudou os rumos da nossa história há 85 anos. No dia 30 de setembro de 1937, os ouvintes da então Hora do Brasil (que depois mudaria de nome para Voz do Brasil) ouviram o anúncio do plano de um golpe comunista contra o presidente Getúlio Vargas. Era uma farsa inventada pelo ex-general Olímpio Mourão para assegurar a permanência de Vargas no poder. Deu certo: o Congresso aprovou a decretação do estado de sítio, abrindo caminho para a implantação do Estado Novo.
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No plano da geopolítica internacional, União Soviética e Estados Unidos disputavam qual era a mais competente no quesito propaganda. Coube à KGB, por exemplo, gerar o boato de que o vírus da Aids foi criado nos Estados Unidos, causando milhares de mortes pelo mundo, sobretudo na África, por rejeição ao tratamento. Qualquer semelhança com as atuais fake news que circulam por aqui sobre as vacinas contra a covid-19 não são meras coincidências. Na disputa pela hegemonia global, ainda tem muita gente que acredita na farsa engendrada pelos russos de que a chegada dos americanos à Lua a bordo da Apolo 11 teria sido uma farsa criada nos estúdios de Hollywood. Tal como hoje ainda tem gente conhecida garantindo que a terra é plana.
No plano religioso, uma das primeiras fake news contra os cristãos foi engendrada pelo imperador Nero – aquele maluco que tocava lira e recitava versos enquanto Roma ardia em chamas que, tudo indica, foram ateadas por ordem dele próprio. A intenção, bem sucedida, era por a culpa nos cristãos pelo incêndio. E por isso eles começaram a ser rejeitados por não participarem das celebrações aos deuses romanos. Boatos e insultos começaram a circular, inclusive que os cristãos eram canibais pelo uso da expressão bíblica “beber o sangue e comer o corpo de Cristo”. Contra os mesmos judeus, uma das mais famosas fake news foi o ”Protocolo dos Sábios de Sião”, publicado na Rússia em 1903, que continha as (falsas) atas de uma reunião do fim do século 19, sobre uma conspiração dos judeus para dominar o mundo. O conteúdo foi traduzido para vários idiomas e propagado freneticamente no século 20. Só nos Estados Unidos, 500 mil cópias foram impressas e distribuídas. Quando os nazistas chegaram ao poder em 1933, o conteúdo do “Protocolo” foi usado como propaganda contra os judeus, justificando o holocausto de 6 milhões deles pelos asseclas de Adolf Hitler.
Esse passeio rápido pela história é apenas um aperitivo para demonstrar o poder de devastação das informações falsas. Agora, voltemos ao mundo de hoje. Se, lá na Idade Média ou mesmo no século 20, quando já existiam prensas capazes de reproduzir milhares de cópias – como as do Protocolo dos Sábios de Sião – imagine-se a força de uma informação maldosa lançada propositalmente na rede mundial de computadores através das redes sociais. Primeiro: a velocidade de propagação é milhões de vezes maior do que a de qualquer boato do passado. Segundo: estudos e mais estudos já comprovaram que é impossível –– impossível, repita-se – desmentir cabalmente uma fake news. É doloroso reconhecer, mas uma mentira repetida centenas de vezes se transforma em verdade, como dizia Goebells. Terceiro: os efeitos das fake news na mudança da convicção do eleitorado são tão fortes que é igualmente impossível reverter seus impactos a tempo de não comprometerem a qualidade dos votos. Churchil já dizia que a mentira dá várias voltas ao mundo enquanto a verdade veste as calças.
O problema maior, em relação às nossas eleições de outubro próximo, é que o próprio presidente-candidato, na qualidade de beneficiário das fakes news, a ponto de permitir a criação de um gabinete do ódio em pleno Palácio do Planalto para sua criação e difusão, obviamente não tem qualquer interesse no combate à principal praga deste século, depois da covid-19. E os órgãos do Judiciário e do Legislativo não dispõem de mecanismos eficazes para enfrentar e punir os responsáveis pela disseminação de informações fraudulentas. Teoricamente deveria caber, então, aos próprios eleitores, a tarefa de checar as informações, antes de dar crédito a elas e passá-las adiante. Mas ter esse grau de “consciência cívica” é exigir demais de um eleitorado que não conta sequer com algum vestígio de educação para a democracia.
Ora, se há centenas de anos os brasileiros acreditam piamente que chinelo emborcado dá azar, assim como quebrar espelho ou abrir guarda-chuva dentro de casa, e que noivo ver a noiva antes do casamento é presságio de mau agouro, como não acreditará no conteúdo de uma mensagem (falsa) que recebeu de um amigo ou conhecido, apontando um crime de tal ou qual candidato? A menos que os responsáveis pela criação e difusão das fake news sejam exemplarmente punidos com cadeia braba, multas e outras penas duras, que já foram prometidas várias vezes e nunca foram aplicadas, essa realidade infelizmente vai melar o resultado do pleito de outubro. Até porque choro, ranger de dentes e arrependimento pelo leite derramado não mudam resultado de eleição.
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