Airton Florentino de Barros*
Ninguém no mundo escapou dos graves efeitos da pandemia da covid-19.
Todas as pessoas, de fato, ainda que indiretamente, foram atingidas, seja acometendo-se pela enfermidade, seja sofrendo com sérias sequelas ou perdendo familiares e pessoas próximas que não conseguiram resistir, seja, ainda, em razão do compulsório afastamento social que acarretou uma recessão econômica generalizada, com pessoas perdendo meios de subsistência e empresas sendo levadas à insolvência.
Por óbvio, a pandemia alcançou a enorme massa de compromissários compradores de imóveis de construtoras mediante pagamento em grande número de parcelas mensais, na maioria das vezes sendo o sinal e as parcelas iniciais pagas com recursos próprios e o saldo por meio de financiamento pelo sistema financeiro habitacional.
Em geral, esse consumidor pertence à classe dos trabalhadores assalariados, profissionais autônomos ou microempresários, todos com pequeno rendimento mensal.
No primeiro caso, se o consumidor já não foi vítima do desemprego decorrente da pandemia, deve, por absoluta necessidade, reduzir despesas para precaver-se da potencial ou quase certa perda da vaga de emprego que ainda tem.
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No segundo caso, como o principal motor da atividade empresarial é naturalmente o consumo, o desemprego dos consumidores acarreta a inevitável redução da demanda por seus serviços e produtos, com a consequente queda de rentabilidade.
O impacto financeiro decorrente da pandemia, pois, foi por demais considerável para todos, exceto para aqueles que, afortunados, podiam investir e investiram nos produtos e serviços especificamente demandados pelas circunstâncias da tragédia que passou a viver a saúde pública (laboratórios, indústria de equipamentos da saúde, comércio eletrônico de atendimento à distância ou de entrega a domicílio, além de uma série de atividades definidas legalmente como essenciais para o interesse social.
Em sua grande maioria, entretanto, os adquirentes foram obrigados a se desfazerem de todo ou de parte do patrimônio, inicialmente para a manutenção do contrato e, depois, no desespero, para a garantia da sobrevivência própria e da família.
Em outros termos, para além de não suportarem os efeitos do mencionado fato extraordinário e imprevisível da pandemia, que lhes subtraiu os recursos que vinham utilizando para a manutenção do contrato, passaram a ter necessidade da devolução dos recursos que já haviam despendido em razão do mesmo contrato como única alternativa então de subsistência.
A primeira providência do consumidor, nesses casos, tem sido propor distrato amigável, sem ônus, mas a empresa compromitente vendedora invariavelmente recusa, sob a invocação da cláusula da irretratabilidade e irrevogabilidade do contrato e, então, inicia o processo de cobrança antecipada do saldo, por vezes, sob a ameaça de alienação pública extrajudicial.
É necessário considerar que, quando se cuida de empresa construtora ou incorporadora ou sua intermediária, que vende unidades imobiliárias aos destinatários finais, é fornecedora ao consumo por definição (CDC, art.3º), enquanto o comprador final do imóvel, por meio de contato de adesão, não pode ter outro senão o conceito legal de consumidor (CDC, art.2º).
Há no caso, portanto, na proteção dos adquirentes, inevitável incidência do Código de Defesa do Consumidor.
De fato, até por ser fundamento da República brasileira o respeito à cidadania e à dignidade da pessoa humana (CF, art.1º, II e III), bem como ao princípio da função social da propriedade (CF, art.5º, XXIII), deve a ordem econômica observar, entre outros princípios, a sagrada proteção do consumidor (CF, art.170, V).
Por isso mesmo o CDC define direitos básicos do consumidor (art.6º), a responsabilidade do fornecedor por atos ilegais e lesivos ao consumidor (arts.12 e segs) e a abusividade de cláusulas contratuais (art.51).
Da mesma forma, o Código Civil admite o simples distrato para a o desfazimento por acordo dos contratantes (art.472), impõe a observância dos princípios da probidade e boa-fé nos contratos (art.422), estabelece limitação ao exercício da liberdade contratual diante da função social do contrato (art.421), faz valer a isonomia entre os contratantes, de modo a não permitir que um exija o cumprimento de obrigação contratual sem que ele próprio cumpra a sua (art.art.476), coíbe o excesso no exercício de direito, considerando-o ato ilícito (art.187); permite a incidência de cláusula penal apenas sobre o contratante culpado (art.408), faculta ao juiz reduzir a penalidade contratual excessiva (art.413) e a corrigir o valor da prestação quando, por motivos imprevisíveis houver desproporção entre o valor da prestação e o do momento de sua execução (art. 317), além de considerar fatos extraordinários e imprevisíveis como suficientes para legitimar a resolução do contrato (art. 478).
Compreensível que a Lei 4.591/64, por ser bem anterior à nova ordem constitucional, ao CDC e ao vigente Código Civil, não tenha protegido da mesma forma o hipossuficiente na relação de consumo traduzida em contrato de adesão.
Note-se que o TJSP, inspirando-se no CDC, já havia em 2010 sumulado a matéria nos seguintes termos: A devolução das quantias pagas em contrato de compromisso de compra e venda de imóvel deve ser feita de uma só vez, não se sujeitando à forma de parcelamento prevista para a aquisição. (Sumula 2).
Já o STJ, que não tem sido lá muito amigo do consumidor (basta ver a sua recente decisão definindo como taxativo o rol da ANS para a cobertura de procedimentos pelas poderosíssimas operadoras de planos de saúde), sumulou em 2015 a mesma matéria, mas admitindo a restituição de parcelas ao adquirente de imóvel quando por sua culpa exclusiva: Na hipótese de resolução de contrato de promessa de compra e venda de imóvel submetido ao Código de Defesa do Consumidor, deve ocorrer a imediata restituição das parcelas pagas pelo promitente comprador – integralmente, em caso de culpa exclusiva do promitente vendedor/construtor, ou parcialmente, caso tenha sido o comprador quem deu causa ao desfazimento.(Súmula 543).
De qualquer modo, essa última súmula não se aplica à hipótese da pandemia, à evidência não ocorrida por ação ou omissão do consumidor, mas por fenômeno extraordinário e imprevisível da natureza, de modo que não se pode falar em culpa de modo a se aplicar eventual cláusula penal.
Não seria de boa-fé negar que o compromisso de venda e compra de imóvel nessas condições sofreu sérios impactos decorrentes da pandemia da covid-19 que, como se sabe, devastou o planeta e provocou no país, a partir do início de 2020, até por imposição legal, o compulsório afastamento social que acarretou, durante longo tempo, a paralisação de atividades sociais, empresariais e individuais, ou sua restrição, situação que projetou efeitos até o presente, com quebras, perda de empregos, retração econômica, de modo a reduzir retorno de investimentos, remunerações e rendimentos de todos os cidadãos, atingindo à evidência também os adquirentes do chamada casa própria.
Ao recusar o distrato, com a restituição imediata e integral, de uma só vez, das parcelas pagas pelo compromissário comprador, a empresa construtora ou de investimento imobiliário, no caso a vendedora, acaba por infringir seu dever contratual, decorrente da lei, de agir conforme os preceitos da probidade e da boa-fé (art.422), ao exceder-se no exercício de seu direito (art.187), por pretender cobrar cláusula penal sem qualquer culpa do adquirente (art.408) e, bem assim, desconsiderar a função social do contrato (art.421).
Não há dúvida, pois, do direito do consumidor à resolução do contrato por impossibilidade de manutenção do pacto em razão do fato extraordinário e imprevisível da natureza, a pandemia.
Com efeito, o Código Civil é de clareza meridiana ao estabelecer: Art. 478. Nos contratos de execução continuada ou diferida, se a prestação de uma das partes se tornar excessivamente onerosa, com extrema vantagem para a outra, em virtude de acontecimentos extraordinários e imprevisíveis, poderá o devedor pedir a resolução do contrato.
A propósito, a situação de desigualdade entre as partes é patente, tornando a contratação excessivamente onerosa para o consumidor, com vantagem desproporcionalmente exagerada para a fornecedora.
É que, se os pobres adquirentes de imóveis financiados, para pagamento em parcelas, em sua grande maioria, foram atingidos pelo compulsório afastamento social, com a paralisação ou demasiada redução de atividade profissional e renda, as construtoras, de seu lado, não chegaram a ser impedidas de exercer suas atividades, permanecendo em normal funcionamento, com a manutenção de seus empreendimentos em pleno vapor (Decreto Federal 10.282/2010, art.3º, LIV).
Pois bem. O fato extraordinário e imprevisível da pandemia da covid-19, por sua relevância jurídica, deve ser considerado suficiente para a resolução do contrato, com a devolução integral e imediata de todas as parcelas pagas pelo consumidor, até para se evitar o enriquecimento ilícito da promitente vendedora, vedado legalmente (Cód.Civil, art.884), com a indevida e indefinida apropriação de recursos financeiros (parcelas pagas) indispensáveis à sobrevivência do adquirente e sua família.
*Advogado, professor de Direito Empresarial, fundador e ex-presidente do MP Democrático
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