Eu quero agradecer às organizadoras desse evento paralelo “Actualizing reparatory justice: Reparations for slavery crimes through decolonizing law no Third Session of the Permanent Fórum on People of African Descent” pela oportunidade de a Coalizão Negra por Direitos estar aqui como organização copatrocinadora (co host).
Sem dúvida, para a Coalizão Negra por Direitos e o Ilê Omolu Oxum, tratar de assuntos relacionados à justiça e à reparação está no topo de nossas prioridades.
Considerando o fato do Brasil ter um dos mais graves históricos de escravidão, tráfico de escravos e comercialização de escravos em seu passado, não é trivial representar duas organizações que, por princípio, defendem os direitos das pessoas negras. E, sim, a Coalizão Negra por Direitos se orgulha de ter 293 organizações do movimento negro associadas, incluindo o Ilê Omolu Oxum.
O comércio de vidas humanas perpetrado por 350 longos anos de histórico colonial e monárquico do Brasil é algo consistentemente vergonhoso – no passado e no presente. Registros históricos consistentes informam que, entre os séculos 16 e 19, os portos brasileiros teriam recebido aproximadamente 3.600.000 escravos – ou quatro em cada dez africanos (mulheres, homens e crianças) traficados para o continente americano.
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Esses números significam a exaustão dos recursos humanos impostos ao continente africano por 4 séculos. Se é verdade que a prática e o tráfico transatlântico de escravos para o contingente americano não atingiram todo o território africano, sequestrando suas gentes, o colonialismo afetou, definitivamente, todo o território africano.
É por isso que, na atualidade, precisamos falar sobre colonialismo e descolonização – o nosso passado e ausência de justiça, de uma perspectiva plural – nos exige revisar vários aspectos do sistema colonial e à luz dessa revisão incluir o debate sobre reparações.
PublicidadeFalar sobre reparação à luz das violações impostas pela escravidão, tráfico e comercialização de escravos nos força a rever como abordamos a colonização até este início do século 21.
Mas existe algo igualmente profundo que nos autoriza estar aqui neste específico painel: o histórico brasileiro de escravidão, tráfico de escravos, comercialização de escravos ainda assombra as pessoas negras no Brasil com a práticas cotidianas de racismo e discriminação racial. Essas práticas forçam pessoas negras no Brasil às condições de maior vulnerabilidade social no país. Não há qualquer indicador social, político, econômico, ambiental que não registre o fato de as pessoas negras serem as mais negativamente afetadas, nenhum!
Então, não podemos ignorar que a colonização foi capaz de criar uma elite econômica e política que nos territórios colonizados de outrora, como no caso da América do Sul, se utilizam da discriminação racial e do racismo para manter o poder sobre os destinos da economia, da política e da cultura, por exemplo.
Eu fui convidada neste painel para apresentar um caso específico sobre o Brasil, um caso de vitória envolvendo diretamente a prática das religiões de matriz africana na cidade do Rio de Janeiro – história, resistência e vitória.
Eu também fui convidada porque sou uma mulher negra praticante do candomblé, uma religião de matriz africana, que tal como outros praticantes, tem uma casa de origem, tem um ilê, e o meu ilê é o Ile Omolu Oxum. Esse Ilê é liderado por uma Iyalorixá muito querida e já idosa, 87 anos, Mãe Meninazinha de Oxum e essa minha mãe lutou por longos 30 anos para que obtivéssemos essa conquista. Qual conquista? Ter recuperado os objetos sagrados que, no início do século 20, foram apreendidos como resultado de uma legislação que, aquela época, criminalizava o culto aos orixás – as entidades sagradas cultuadas por pessoas negras traficadas e escravizadas no Brasil.
A criminalização das pessoas negras após abolição do trabalho escravo e a perseguição aos adeptos de religiões de matriz africana, incluindo suas lideranças religiosas, são fatos que materializam as práticas de discriminação racial e atestam como o racismo e a hierarquização étnico/racial no Brasil ocorreram e ainda ocorrem na sociedade brasileira.
O Código Penal brasileiro, promulgado em 1890 – ou seja, apenas dois anos após a abolição da escravidão, em 1888, tipificou, por exemplo, as práticas de cura, popularmente reconhecidas pela comunidade negra (e, também, entre brancos), como falso exercício da medicina, curandeirismo e espiritismo. E foi essa compreensão racista que embasou a atuação policial contra as casas religiosas afro-brasileiras àquela época, incluindo a apreensão (aprisionamento) de suas lideranças e os objetos litúrgicos presentes nesses lugares. Nos processos criminais impetrados contra as lideranças religiosas daquela época, os objetos litúrgicos serviriam como provas, como materialidade, das práticas religiosas que o Código Penal de 1890 apontava como ilegal.
No caso do Rio de Janeiro, capital do país desde 1808, o maior porto de desembarque de escravos das Américas durante o século XIX, com imensa população de origem africana, a perseguição policial foi intensa, sistemática e presente na memória de distintas gerações de pessoas negras e adeptos das religiões de matriz africana.
Mãe Meninazinha, nascida em 1937, ouviu essas histórias de repressão policial de sua avó, Iyá Davina (1880-1964), quando era criança. Ela escutou de sua avó que a polícia tinha por regra fazer incursões nas casas de santo (terreiros), prender as lideranças religiosas e seus seguidores, fossem homens ou mulheres, e confiscar os objetos litúrgicos sagrados – algo absolutamente inaceitável pelos fiéis e lideranças religiosas.
Mãe Meninazinha cresceu ouvindo as queixas de Iyá Davina sobre essas incursões policiais e suas denúncias sobre o quanto era injusto e inaceitável que esses objetos litúrgicos se mantivessem em poder da polícia. E foi por isso, por ouvir esse clamor sincero de sua avó, e de outras pessoas da religião, que Mãe Meninazinha nunca desistiu da ideia de libertar o nosso sagrado, e arrancar os objetos litúrgicos sagrados das mãos da polícia. Por mais trinta anos ela lutou por isso, suavemente como uma filha de Oxum, ela conquistou isso.
Desde os anos 1930, os objetos sagrados eram mantidos no Museu da Polícia do Rio de Janeiro e sem qualquer acesso público. É verdade que eles foram mantidos em bom estado de conservação, mas sem qualquer acesso público. No entanto, no dia 20 de setembro de 2021, Mãe Meninazinha de Oxum conseguiu que os objetos sagrados, mantidos em poder da polícia por quase um século, fossem retirados do Museu da Polícia e transferidos, definitivamente, para o Museu da República, um órgão do Governo Federal localizado, igualmente, na cidade do Rio de Janeiro.
Considerando o histórico de sequestro dos objetos sagrados, esse acervo ganhou um nome realmente especial: “Acervo Nosso Sagrado”, uma coleção de 518 peças religiosas com distintos significados litúrgicos. E esse nome foi dado por Mãe Meninazinha de Oxum, a guerreira.
Enfim, são muitos os detalhes políticos e jurídicos desse caso e dessa vitória. Importa mencionar que os fatos relacionados à essa conquista estão muito bem documentados, contou com ampla participação de lideranças religiosas da cidade do Rio de Janeiro e igual divulgação nos meios de comunicação.
No momento, os objetos sagrados sob a guarda do Museu da República estão sendo apropriadamente catalogados e, mais importante, a pesquisa historiográfica sobre eles tem um foco principal: associar as informações específicas constantes nos inquéritos judiciais, as informações publicadas nos jornais à época das incursões policiais e os objetos sagrados retirados das casas religiosas.
Ou seja, a pesquisa histórica tem por objetivo demonstrar que os objetos religiosos confiscados materializam o processo de criminalização a que foi submetida às religiões de matriz africanas, as lideranças religiosas e, também, as pessoas de maioria negra que professavam a fé de origem africana.
Qual a importância de trazer essa experiência de resistência neste painel? Nós podemos, de distintas perspectivas, afirmar que o Acervo Nosso Sagrado é hoje um exemplo de reparação histórica. Podemos afirmar que a persistência de Mãe Meninazinha é uma demonstração de enfrentamento ao racismo religioso e, muito importante, uma demonstração de respeito à nossa ancestralidade e religiosidade.
Podemos atestar que o Acervo Nosso Sagrado representa, hoje, um exemplo de respeito à nossa memória, ao nosso passado. Mãe Meninazinha não esqueceu a indignação de sua avó Iyá Davina e continuou a sua luta para que o nosso sagrado fosse libertado, que o nosso sagrado fosse considerado uma manifestação digna de nossa existência e que, por isso, poderia e deveria ser conhecido por todas as pessoas. Afinal, o direito à memória e um exemplo de enfrentamento ao racismo, é um exemplo de enfrentamento ao racismo religioso associado e, certamente, um exemplo de lutar por reparação no século 21.
Muito obrigada.
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