Raquel Gontijo *
Nos últimos 15 anos, testemunhamos uma transformação profunda nos modelos produtivos e nos valores que regem a economia. Gerações futuras possivelmente olharão para este período e o estudarão como uma revolução que não se limitou à tecnologia, mas que impactou também a estrutura e o tecido social. A maneira como nos comunicamos e criamos valor, produtos e serviços tem sido significativamente alterada por dinâmicas como os games, as mídias sociais, a interação digital e a inteligência artificial.
Esses conceitos ainda parecem distantes para muitos. Apesar de chamarem atenção como grandes outdoors, permanecem em boa parte no campo do desconhecido. Embora a maioria das pessoas reconheça a influência das mídias sociais no consumo, poucos realmente compreendem termos como algoritmos, engajamento, alcance e fidelização.
No entanto, a utilização dessas ferramentas e estratégias para impulsionar a economia de um país, promover sua imagem e atrair investimentos estruturantes não é uma ideia nova. Esse tipo de abordagem já era observado na guerra de propaganda do início do século 20. E, recentemente, temos um exemplo prático no extraordinário crescimento da Coreia do Sul.
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No Brasil, vivemos um momento singular. Para aproveitar plenamente essa oportunidade, é fundamental não apenas ter uma visão clara, mas também realizar ações concretas e bem direcionadas. Uma das principais chaves para isso pode estar no setor de games.
No primeiro semestre de 2024, o setor de jogos no Brasil alcançou uma conquista histórica com a aprovação e sanção do Marco Legal dos Games, a primeira legislação sobre o tema no país. Embora o Brasil tenha sido um dos últimos membros do G20 a regulamentar o setor, a lei já nasce com aspectos mais avançados do que praticamente todas as regulamentações globais. Isso se deve aos pilares fundamentais em que se apoia, como a proteção de crianças e adolescentes nos ambientes de jogo e a distinção clara entre games e jogos de apostas, o que oferece segurança jurídica. Um dos aspectos mais inovadores da lei é o reconhecimento da natureza transversal dos games, que envolvem cultura audiovisual, tecnologia, pesquisa, desenvolvimento e inovação.
Embora seja apenas o primeiro passo, o Marco Legal dos Games já desperta o interesse internacional, posicionando o Brasil como um ator relevante na economia digital que moldará as próximas décadas.
Para muitos que estão habituados aos formatos tradicionais da economia, mesmo dentro do campo criativo, os games parecem algo alienígena. Eles surgem organicamente de comunidades que interagem de maneira autônoma e já exportam globalmente seus serviços e produtos, graças à conectividade digital. A facilidade com que empresas de jogos conseguem “exportar o Brasil” e sua cultura confere ao setor um potencial imenso para consolidar a imagem do país no exterior. No entanto, para alcançar esse objetivo, é crucial fortalecer a produção nacional e incentivar a criação de propriedade intelectual. Ao desenvolver jogos que incorporem elementos da cultura brasileira, o país não só ganha relevância internacional, mas também molda a percepção global de sua identidade cultural.
Esse potencial já está sendo explorado em eventos internacionais, como Gamescom, GDC e PAX. Essas oportunidades não apenas conectam os desenvolvedores brasileiros ao mercado global, mas também ajudam a construir a imagem do Brasil como um país inovador e criativo. No entanto, é necessária uma estratégia clara para escalar esse esforço e transformar o setor em um mecanismo poderoso de “soft power”, projetando uma imagem autêntica e positiva do Brasil no cenário internacional.
Neste momento em que o mundo está particularmente atento à regulação das redes e da economia digital, é fundamental que o Brasil aproveite sua postura progressista e as conquistas regulatórias recentes. Ampliar os canais de comunicação com governos estrangeiros, participando ativamente de fóruns internacionais, pode permitir ao país colaborar na definição de normas e práticas globais para o setor. Para isso, é preciso um esforço coordenado de todas as esferas governamentais, posicionando o Brasil como uma referência no campo. A aplicação de boas práticas internamente e o fortalecimento de setores transversais da economia digital serão essenciais para alcançar o pleno potencial produtivo.
As parcerias internacionais e o desenvolvimento de políticas públicas voltadas para a governança digital podem abrir o caminho para que o Brasil exerça liderança nesse cenário.
O Brasil vive um momento único, com uma oportunidade clara de se consolidar como uma potência no setor de games e na promoção de políticas de soft power. No entanto, esse potencial só será plenamente realizado com o apoio governamental consistente, incentivos à inovação e a criação de uma cultura que valorize tanto o desenvolvimento tecnológico quanto o impacto cultural dos games. Se bem executadas, essas estratégias não só trarão benefícios econômicos, mas também consolidarão o Brasil como um líder cultural e tecnológico no cenário global.
* Diretora de Relações Institucionais e Governamentais da Associação Brasileira das Desenvolvedoras de Jogos Digitais (Abragames) e graduada em Relações Internacionais pela Universidade de Brasília.
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