No distante ano de 2005, a cidadania brasileira fora convocada para decidir, em referendum nacional – com direito a Horário Eleitoral Gratuito – sobre a proibição da comercialização de armas prevista no art. 35, do Estatuto do Desarmamento. A consulta popular se resumia, à época, a uma pergunta simples e direta: O comércio de armas de fogo e munição deve ser proibido no Brasil? Em resposta, lembro-me de que fiz publicar vários artigos defendendo o voto pelo SIM, até porque militava na “Campanha pelo Desarmamento”.
Participei de vários debates, inclusive com armamentistas que nunca teriam armas de fogo, todas elas convencidas de que as armas eram fundamentais para a “proteção da cidadania de bem e promoção da “paz”. Em geral, a defesa do “armar a população” estava centrada em duas argumentações: a) o provérbio romano “Se queres a paz, preparara-te para a guerra”; b) a maquiavélica expressão “Antes de tudo, estejas armado”, senão o crime armado o vencerá. Embora sendo o armamento destinado e construído exclusivamente para matar, externavam eles que não havia contradição entre guerra e paz, tampouco entre agressão e defesa.
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A combativa turma defensora do SIM contra-argumentava que as armas de fogo não cumpriam a dupla missão de “proteção da paz e da vida”, até porque eram responsáveis diretas pelo aumento da própria violência, vitimando em dois anos mais pessoas no Brasil do que os militares estadunidenses durante a guerra do Vietnã. Ao contrário, as armas alimentaram todas as guerras espalhadas pelo mundo, desde as invasões egípcias, passando pelas grandes guerras mundiais. Elas foram a base do poder de Hitler, Mussolini, Napoleão, Franco, Salazar e outros governantes bélicos que prenderam, torturaram e assassinaram a sua própria população. Elas tinham sido a falsa acusação do estadunidense Bush quando invadiu o Iraque, destruindo os países e o equilíbrio do Oriente Médio. Enfim, que a História demonstrava que a política das bombas atômicas, dos canhões, das metralhadoras, dos cruzadores e dos caças não promoveram a paz, apenas servindo para armar aos espíritos bélicos dos governantes, da indústria armamentista, dos terroristas e dos mercenários.
Também estávamos convencidos da veracidade dos seguintes dados: a) um terço das despesas e emergências hospitalares eram motivadas pelo uso de armas letais; b) eram elas responsáveis, somente na cidade do Rio de Janeiro, por 75% das mortes de jovens do sexo masculino, superando os acidentes de carro, as doenças e as causas naturais; c) as pessoas que usavam armas de fogo tinham maior possibilidade de serem assassinadas; d) as armas de fogo traziam violência para a família, pois aumentavam o risco de homicídio interfamiliar; a violência torpe e imprevisível na vizinhança e na comunidade; os acidentes domésticos graves ou fatais; os suicídios; os arroubos violentos do estresse do caótico trânsito e outros crimes banais provocados pela perigosa e incontrolável ira do momento; e) quase metade dos homicídios eram cometidos por pessoas sem histórico criminal, que – após os inéditos crimes praticados – eram excluídas das estatísticas das “pessoas de bem” e incluídas, absurdamente, no rol do “time da cidadania do mal”, f) eram as armas legalizadas que abasteciam o crime inorganizado e as organizações criminosas, pois, quando roubadas ou perdidas, representavam um terço do potencial bélico posto à disposição dos mais variados crimes.
Infelizmente, por maioria esmagadora (63,94%), a proposta de desarmamento total da população fora vencida, mantendo-se a política de comercialização controlada das armas e munições. Empossado o militar Jair Bolsonaro – eleito fazendo apologia às armas e à aniquilação dos adversários – impôs-se ao Brasil a política de liberação estimulada e descontrolada de armas e munições. Repentinamente, ao discurso da “proteção da paz e da vida”, o nome “CACs” foi adicionado ao dicionário brasileiro. Colecionadores, atiradores e caçadores saíram das tocas e passaram a metralhar a sociedade com poderosas armas de matar pessoas, exibindo-as em redes sociais e em encontros presenciais nada sociais. Os criminosos contumazes legalizaram seus arsenais, ofertou-se novas armas ao crime inorganizado, as mortes provocadas por pessoas tidas de bem multiplicaram-se e a violência interpessoal logo explodiu, sobretudo em forma de feminicídio.
A guerra Rússia x Ucrânia, a chacina praticada por Israel em Gaza, o conflito que se espalha por todo Oriente Médio, os arsenais exibidos pelos bélicos EUA, Irã e Coreia do Norte e os mais diversos atos de terrorismo praticados contra civis, mostram que as armas não têm compromisso com a paz. Elas matam e quando sacadas fazem o mundo inseguro, violento e sem qualquer perspectiva de esperançar a vida. Salvo para as indústrias armamentistas, os traficantes de armas e os governantes bélicos que banalizam a mortes, as armas são munições que abatem, impiedosamente, a vida e as pessoas, sejam elas de bem ou não.
PublicidadeA proibição da comercialização de armas de fogo efetivamente não muda o espírito bélico de muitas pessoas, pois se continuará o comércio de armas clandestinas, ainda que movimentado pelos chamados “cidadãos de bem”. A proibição não desarmará os bandidos, tampouco as casas de quem já tem arma como um souvenir da morte ou uma medalhinha da vida. Mas se tivermos menos armas e pessoas com elas circulando, poderemos fazer real o que nos ensinou Bob Marley: se todos derem as mãos, quem sacará as armas?
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