Patrícia Paixão *
Os ataques ao processo eleitoral de 2022, no Brasil, acenderam um alerta sobre os riscos de retrocesso político. As flagrantes ameaças de grupos extremistas de direita contra a livre manifestação de militantes petistas em campanha, inclusive com o uso de violência física, a produção e disseminação de desinformação sobre a segurança das urnas eletrônicas e o ataque aos ministros do Supremo Tribunal Federal (STF) são apenas alguns exemplos.
Como se não bastasse, esses grupos civis encamparam mobilizações antidemocráticas em frente a quartéis, além do bloqueio de estradas federais, questionando o resultado das urnas, que marcaram a vitória de Lula (PT) contra Bolsonaro (PL). Talvez a gravidade maior disso tudo resida na leniência de algumas instituições, que deveriam resguardar a democracia, em relação à punição dos líderes dos atos golpistas que buscam desrespeitar o resultado eleitoral.
O que se sabe é que há empresários, partidos políticos e representantes governamentais – como Bolsonaro e seu vice Hamilton Mourão, que inclusive é um militar da reserva – estimulando as ações pró-golpe. Mas esses abalos nas estruturas da democracia representativa não são de agora, importa registrar. Em 2016, houve uma cisão nas suas bases, quando setores dos campos da política, do sistema de Justiça e da mídia corporativa apoiaram o golpe contra a presidenta Dilma Rousseff (PT), numa manobra nomeada pelo eufemismo “impeachment”.
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Para discorrer sobre os desafios deste Brasil de hoje e o que será inaugurado a partir de 2023, com a posse da ampla frente que assumirá a presidência junto com Lula, e os rumos da democracia representativa e participativa, conversamos com Carmela Zigoni, que é doutora em antropologia social pela Universidade de Brasília (UnB), pesquisadora colaboradora no Laboratório de Antropologia da Ciência e da Técnica (LACT/UnB) e assessora política do Instituto de Estudos Socioeconômicos (Inesc), onde atua no monitoramento do orçamento público nas agendas de igualdade racial, mulheres e quilombolas; dados abertos e transparência, e reforma do sistema político.
A entrevista foi conduzida por Patrícia Paixão, que é jornalista, doutora em Comunicação e integrante do Intervozes – Coletivo Brasil de Comunicação Social.
PublicidadePatrícia Paixão – Ainda podemos dizer que estamos vivendo sob as bases do Estado Democrático de Direito no Brasil, apesar de todos os golpes contra a política representativa?
Carmela Zigoni – Eu acredito que, apesar de a nossa Constituição de 1988 ser cidadã e desde então ter havido um esforço para construir institucionalidades e processos democráticos que avançaram – não só o direito ao voto, as eleições regulares, enfim –, nós ainda estávamos num processo de chegar a essa democracia. Primeiro porque os crimes da ditadura militar foram anistiados, e, fazendo uma análise do ponto de vista sociocultural, isso gera um problema de memória e de mácula, pois o sistema de Justiça já nasce com essa questão, tanto que a gente vê hoje os militares como uma força política ainda muito presente na sociedade. O outro aspecto que não deixou essa democracia ser plena como deveria foram as desigualdades históricas sociais que nós temos. O Brasil é um país forjado no colonialismo, na exploração dos povos indígenas e dos escravizados africanos, e essas pessoas não participaram plenamente do processo democrático pelo alcance pleno da cidadania.
Estamos numa democracia? Poderíamos dizer que sim, porque tivemos eleições agora, mas que foi um processo eleitoral também maculado por ilegalidades, compras de votos, práticas históricas que visam reproduzir esse sistema desigual de privilégios. Mas acredito que, apesar de tudo, estamos em uma democracia e esperamos que sejam respeitados os resultados das últimas eleições, porque temos forças ainda atuando para que não seja. Para resumir, nós vivemos numa democracia frágil, vulnerável. Assim sendo, cidadãos e cidadãs, parcelas grandes da população, estão fragilizados e vulnerabilizados, inclusive porque muitas decisões são tomadas sem a participação da população que fica à mercê dessa representatividade.
A vitória de Lula nessas eleições foi considerada muito expressiva – menos pelo valor numérico e mais por ter conseguido vencer toda uma máquina montada pela extrema direita e grupos ultraconservadores para tentar garantir a reeleição de Bolsonaro. Mesmo assim, todo esse processo gerou fissuras e impactos, sobretudo porque esses grupos perdedores não aceitam as regras do jogo democrático e continuam ativos. Você acredita que, com tudo isso, o campo democrático saiu vitorioso das eleições?
O campo democrático venceu, venceu inclusive como um campo alargado, entre o campo popular e setores das elites comprometidas com os princípios republicanos. Lula venceu a partir da instalação de uma frente ampla, que alguns setores esperavam que fosse uma terceira via, e o próprio Lula articulou essa terceira via, essa frente amplíssima de interesses. Então não será um governo de esquerda, mas um governo de coalizão, de alianças de grupos que se comprometeram em frear processos autoritários que estavam em curso a partir de Jair Bolsonaro, como o furo no teto de gastos, a irresponsabilidade fiscal – e agora revelou-se um rombo de 400 bilhões –, a criação do orçamento secreto, o aumento do auxílio emergencial em ano eleitoral, ou seja, uma série de medidas, ilegais e inconstitucionais, e que as instituições, talvez para evitar o caos social, não agiram em tudo.
A extrema direita está organizada não só no Brasil, mas também internacionalmente, pois existem processos assim acontecendo em outros países. A volta do nazismo como um valor no espaço público também não é só aqui, acontece na Europa e nos Estados Unidos. São fenômenos para a gente ficar atento e não são totalmente novos. Como a gente vem de uma estrutura racista, patriarcal, é um ambiente propício para esse tipo de valor emergir. A gente teve o integralismo no passado, agora tem o chamado bolsonarismo, mas se a gente observar os valores são semelhantes: é uma classe branca, masculina, que domina as demais; elites concentrando o poder econômico, subjugando outros; os direitos perdem lugar para a vontade dessa minoria. São esses valores que temos que enfrentar.
A nossa chamada democracia representativa anda cambaleante nos últimos tempos, muito pelo abuso de poder econômico nas eleições, a desinformação como dispositivo de desconstrução do debate público honesto e o próprio funcionamento partidário que não favorece a diversidade de candidaturas como deveria, sobretudo de mulheres, pessoas não brancas e LGBTQIAP+. Como podemos salvar o que nos resta da democracia representativa? Que modelos, que reformas poderíamos seguir?
Apesar de a gente não ter alcançado a equidade na nossa representação – o Congresso (Nacional) continua com só 15% de mulheres, pouquíssimas pessoas negras, pouquíssimas pessoas indígenas –, ainda assim, por incrível que pareça, nós avançamos. Se você olhar a formação dos Congressos anteriores, era só homem branco. A democracia representativa nasce cambaleante, porque os sujeitos que poderiam estar nesses espaços eram os homens brancos. O que ocorre é que as mulheres foram à luta, as pessoas negras também, e agora os indígenas se organizaram para aldear a política e fazer a bancada do cocar, e estão em luta tentando insistentemente abrir essas portas, que não são abertas espontaneamente. Tem sido criados mecanismos para tentar minimizar isso, criou-se a cota para pessoas negras, com recurso de 30%, mas na eleição anterior os partidos liberaram o valor para essas candidaturas faltando uma semana para a eleição. Então concordo que é preciso rever algumas questões dentro dos partidos, mas lembrando que os partidos são instituições que refletem a nossa cultura enquanto sociedade. Se você tem uma sociedade machista, sexista, racista, isso vai ter espelho nos partidos. A maioria dos partidos é comandada por homens, por brancos, por descendentes de europeus, mesmo na esquerda. É preciso, inclusive, provocar para dentro da esquerda, que se coloca num lugar de combate às desigualdades, que também atue nesse sentido.
Nos quatro anos de governo Bolsonaro, vivenciamos o que há de pior em relação à exclusão de grupos sociais, minorias políticas e movimentos sociais das diversas esferas de poder. Nos anos em que o PT esteve no poder central, ao contrário, houve uma inserção desses grupos nos espaços de decisão, por meio de fóruns, conselhos, conferências, entre outras instâncias, ou seja, houve uma descentralização de políticas. Qual sua expectativa neste novo governo Lula, que se inicia em 2023? Você acredita que vai haver o fortalecimento da democracia participativa?
Acho que sim, vai ter uma melhora muito grande, inclusive o presidente eleito Lula já tem falado da retomada dos conselhos, das conferências, que são espaços institucionalizados, com participações importantes. Mas haverá um desafio, na medida em que é um governo com várias forças e os movimentos sociais vão ter que continuar organizados, cobrando, monitorando, construindo junto, e não vai ser fácil, porque são espaços muitas vezes impermeáveis. Vai ser uma nova luta, uma luta pelo espaço de reconstrução, que não está dado. Precisamos dizer que queremos participar, que vamos participar e como vamos participar. Eu vivi o período de conferências, e a gente podia opinar sobre políticas sociais e, no máximo, ambientais. Mas as pessoas querem opinar sobre o modelo de desenvolvimento econômico, porque é ele que impacta nos territórios indígenas, quilombolas, ribeirinhas. Então, nessas políticas, que são tidas como duras ou masculinas, a sociedade opinava bem menos, como economia, justiça, minas e energia. Como tornar essas políticas também espaços que a gente possa participar e opinar? Mas, obviamente, vai melhorar muito, até porque o Bolsonaro não só fechou todos os espaços de participação, além disso, ele transformou a população em miserável novamente, a fome voltou, isso mina a capacidade de organização das pessoas. Existe um força política e solidária muito forte na sociedade brasileira e a extrema direita tenta minar isso, mas essa energia não morreu.
Durante os dois primeiros governos do PT, a partir da eleição de Lula, em 2003, grande parte dos sindicatos e movimentos sociais sofreu críticas por supostamente ter sido adesista à gestão, tendo perdido a criticidade e a capacidade de cobrança. Muitos setores alertaram para o fato de que, mesmo estando na base de apoio de uma gestão progressista, é preciso ter posicionamentos e algum distanciamento. Como você reflete sobre essa questão?
É muito importante separar o dia de hoje desse momento aí que você está falando, justamente porque ainda existem grupos tensionando o resultado eleitoral, criando fatos que deixam a população confusa. É preciso que essas forças populares que contribuíram para eleger o Lula estejam na base de apoio até a diplomação e posse. Não acabou o processo ainda. É óbvio que fizemos críticas à falta de mulheres e negros na transição. Temos que criticar, sim, mas nós temos que ir junto, porque a política é feita também de ritos. É preciso que a gente cumpra todos os ritos necessários para que Lula chegue de fato ao poder. Depois, uma vez que o governo começa, as coisas mudam. A função dos movimentos, das organizações não governamentais, é fazer o controle social, monitorar aquele governo, fazendo a crítica e construindo junto, por isso os espaços de participação são importantes. E esses espaços não podem ser neutralizantes da crítica. Os conselhos não podem ser espaços de cooptação, têm que ser espaços de diversidade, de pluralidade de ideias, de embates entre governo e sociedade civil, embates que visam um objetivo comum.
Sob o ponto de vista da antropologia, como você percebe o campo midiático, incidindo sobre a política, sobre a democracia representativa, decidindo muito sobre os rumos das eleições?
A comunicação faz parte da forma como o capitalismo se reorganizou na modernidade. Os regimes fascistas e nazistas usaram o cinema para disseminar suas ideias terríveis e criar unidades identitárias. A técnica foi evoluindo, saindo da fotografia e do cinema, hoje a gente tem tudo no digital. A comunicação tem um papel na política que pode ser ruim e que pode ser muito bom, porque através da comunicação também a gente pode expor nossas ideias, com humor, com beleza. A arte tem um papel importante na política. O grande problema – de novo – é a desigualdade de acesso e de poder sobre os meios. Quem são os donos dos meios de comunicação e quem define o que vai ser dito para o jornal, seja ele impresso ou digital? Com as redes sociais é o mesmo problema. Veja: hoje nós nos comunicamos, inclusive nós que somos ativistas em defesa de direitos e da democratização da comunicação, como o Intervozes, somos obrigados a disseminar nossas ideias em plataformas que são corporações gigantescas. Nós não somos donos dos meios. É urgente que se discuta o papel corporativo da comunicação na influência da política. E como isso pode prejudicar democracias inteiras, como foi o caso de 2018, quando o terror moral dominou completamente o que estava sendo comunicado para a população nas eleições.
* Patrícia Paixão é jornalista, doutora em Comunicação e integrante do Intervozes – Coletivo Brasil de Comunicação Social.
** Esta entrevista integra a série “Ideias para um Brasil democrático”, conjunto de textos que pretendem contribuir com a reconstrução do Brasil e com a necessária democratização da nossa democracia. A série é uma iniciativa do Intervozes – Coletivo Brasil de Comunicação Social e da Plataforma dos Movimentos Sociais pela Reforma do Sistema Político.
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